Eric Mingus, “Shake Up the World”, in https://www.youtube.com/watch?v=fjJP5jYEQJE
Não sabia o que fazer à desarrumação da alma. Era como se por dentro das veias fervesse a promiscuidade de ideias, sobrepondo-se umas às outras, incapaz a lucidez de desenhar as fronteiras entre elas. Sentia-se subalterno. Não sabia em relação a quê, ou a quem; a subalternidade implica uma relação com um algo que nos é exterior. Talvez fosse o produto da desordem. Considerava este estado de desarrumação um contratempo. Ninguém gosta de sentir o frémito que fala em nome da avassaladora desordem interior. Por enquanto, o sono não tinha sido ferido. Mas nem essas horas, em que o pensamento aparentemente se desligava da corrente, eram medicinais. Com a manhã, não emergia o ar refrescante que costuma ser apanágio da alvorada. Lamentava que não pudesse usar esta metáfora, a crer nos mesmos quadros sombrios que se arqueavam diante de si, bolçando uma intensa cefaleia que o acompanhava pelo dia fora. Se precisava de convocar ideias, chegava a uma encruzilhada. As pontas soltas de fragmentos de ideias cavalgavam em sentidos opostos, parecia atacado por uma trovoada intelectual. Sentia-se órfão de ideias, porque não conseguia encontrar o fio de prumo. Já levava meses neste estado catatónico. Não conseguia escrever duas frases seguidas sem imediatamente se interrogar sobre o seu sentido, para logo concluir que eram ininteligíveis. As folhas arremessadas para o lixo eram o resultado do tumultuoso sobressalto. E o pior, é que a sensação de subalternidade continuava a acossá-lo. Não se queria sentir subalterno, de nada ou de ninguém. A independência era o que mais prezava. A imensa teia de ideias que se sobrepunha num estado caótico deixava-o sem lugar definido. Essa era a subalternidade que o povoava. Até que numa noite de insónia percebeu que estava refém de um equívoco: o eflúvio de ideias, muitas delas de sentido contrário, não era um garrote. Era um dom. O estigma da subalternidade cessou, sem adiamento.
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