20.8.19

O que queres ser quando fores pequeno? (short stories #145)


Fat White Family, “Fringe Runner” (live at The Lexington), in https://www.youtube.com/watch?v=RTWap6oStfY
          Na azenha sobranceira ao rio claro, uma voz cerziu a interrogação: “o que querem ser quando forem pequenos?” Olharam uns para os outros. A voz era gutural, misteriosa, como a voz que se revelava sem rosto. Não estavam a contar. Não é costume formular a questão nestes termos, terão pensado. E eles já não iam para novos, menos sentido fazia a pergunta. Um tomou as rédeas do exercício contrafactual e disse: “eu quero ser guitarrista.” Os outros ficaram ainda mais perplexos. Se havia certeza que podiam ter, é que nenhum ia ser pequeno no futuro que começava daí a uns instantes. Como podia alguém ousar uma resposta a pergunta desprovida de sentido? Outro, não ficando atrás, disse: “eu quero ser sinaleiro, daqueles que agora já não há.” Outro acrescentou: “eu, desempregado, com direito a subvenção vitalícia.” (Este era um homem da direita rude, que desdenhava da segurança social.) Outro não se ficou: “quando for pequeno, quero ser dono de um restaurante.” Já só faltava a outra metade para a curiosidade da voz anónima ficar saciada. Os outros quatro estavam relutantes. Os que já tinham respondido olhavam para os renitentes, à espera da confidência. Um deles, incomodado com tantos olhares intrusivos, anuiu: “quero ser...quero ser...um déspota.” Foi seguido de outro comparsa, que admitiu querer ser “marinheiro, mas só no inverno, quando os navios ficam resguardados no porto.” E mais uma reação: “quando for pequeno, eu quero ser grande, para não ter a ambição de não ser aquilo que não posso ser.” Só faltava um dos comparsas. Demorou algum tempo, até que decidiu tomar a palavra: “eu quero ser apóstolo.” “Apóstolo?!”, exclamaram três ou quatro, em uníssono. “Sim”, respondeu sem pestanejar o aspirante a apóstolo, “tenho tantas ideias que quero espalhar.” Ao fim de umas horas de intenso colóquio, todos perceberam a pergunta. É que vamos para pequenos. Não é assim que os velhos são tratados?

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