16.8.19

Punk em part time (short stories #143)


Ty Segall, “Self Esteem” (live on KCWR), in https://www.youtube.com/watch?v=x3CsHzm4TKs
          Das nove às cinco: fato e gravata, sapato italiano dispendioso, linguagem de financeiro, a preceito de quem transaciona ações e derivados nas bolsas internacionais, um código de conduta dos hipocritamente cavalheiros que pontuam no mundo da finança. Punhos de renda ao almoço, com o chefe e três possíveis investidores de um país emergente, ele fazendo uso do impecável inglês com indisfarçável sotaque de Cambridge (mercê dos estudos pagos a peso de ouro pela família endinheirada). À medida que a tarde avança e se aproxima a hora de marcar o ponto, vai sentindo uma vagarosa transfiguração. Só por dentro. No exterior, mantém a pose fleumática e o rigor da conversação, como é exigível no mundo da finança. Cinco horas: à saída do sumptuoso edifício, a gravata já não aperta a jugular. Cinco e dez: chega ao carro e a fralda esquerda da camisa já se sobrepõe às calças. Liga o automóvel; liga o aparelho onde tem armazenada a biblioteca musical: The Stooges, escolha aleatória. O gel que abrilhanta a silhueta de financeiro já desapareceu e o cabelo ostenta-se, desgrenhado, caótico. O automóvel moderno está hermeticamente fechado e devidamente insonorizado, mas as pessoas apercebem-se da música estridente. Agora, The Clash. Seis menos cinco: chega a casa. Os vizinhos sabem da sua metamorfose. Já vem com os sapatos na mão e meneia vigorosamente a cabeça em rima com a música que entra pelos ouvidos, debitada por uns auscultadores modernos. Sete e meia: prepara o jantar na companhia dos Jesus and the Mary Chain, com uma incursão por She Wants Revenge, Shame e Idles. Fez-se noite. Os colegas preparam o dia seguinte, lendo relatórios de fio a pavio. Dez e vinte: sai de casa. Embrenha-se na noite, nos lugares subterrâneos. Veste roupa escura e gasta. Onze e quarenta: assiste a um concerto de uma banda emergente. São de Aveiro. No moche, choca de cabeça com um indivíduo não identificado. Não há problema. No dia seguinte, depois das três horas de sono, pedirá a alguém para disfarçar o hematoma com maquilhagem. Nove menos três: entra ao serviço. Murmura umas estrofes de “Self Esteem”, de Ty Segall, enquanto dá umas ordens de compra no mercado de Tóquio. Está em condições de assegurar que não é bipolar.

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