12.8.19

Sem soldo (short stories #139)


Sleater-Kinney, “Can I Go On”, in https://www.youtube.com/watch?v=pTZXBmRaQtw
          Um disse: “faço questão de pensar pela minha cabeça.” O outro contrapôs: “eu prefiro ler as palavras dos outros para formar as minhas ideias”. O primeiro ripostou: “mas, nesse caso, as ideias não são tuas. São tomadas de empréstimo, uma amálgama das palavras que lês.” O segundo defendeu-se: “Ninguém pode dizer que tem ideias próprias sem ter colhido inspiração algures.” E partiu para o contra-ataque: “se dizes que pensas pela tua cabeça, tudo o que pensas é apenas produto do teu pensar?” O primeiro cedeu o flanco: “eu não disse que não leio. Disse: o que leio não me expõe a essas palavras. Prezo a independência de pensamento.” Ao que o segundo acrescentou: “Admitir que se é influenciado pelas palavras de outros não hipoteca a independência de pensamento. Aquilo de que me acusas – o meu pensamento ser uma amálgama, e posso entender que não seja recomendável – é um pré-juízo que fermenta um prejuízo de análise. Posso dizê-lo, e com orgulho: o meu pensamento tem variegadas influências. Fui eu que o construí, na densidade das leituras que fui fazendo. Isso não compromete a minha independência.” O primeiro não desistiu: “não concebo estar assim a soldo de alguém. Se dizes que o teu pensamento herdou as influências retidas em leituras, acabas por ser um reprodutor de ideias de outros. Esse é o barómetro da dependência.” O segundo não acusou o toque: “Ainda estou para conhecer o homem ou a mulher que seja virginal em pensamento, desprovido de influências. Dir-me-ás, se ele ou ela existirem, a que planeta pertencem.” O primeiro não achou graça ao remoque: “Já não estamos a discutir com seriedade?” O segundo acalmou-se: “Estás a tresler as minhas palavras. Ficamos assim: tu, orgulhosamente embebido na independência do teu pensamento. E eu, admitindo que o meu pensamento recebe influências várias, sem comprometer a independência volitiva. Sou eu que decido que influências transitam para o meu pensamento.” E seguiram no entardecer, bebendo as suas cervejas, que estava um calor de ananases.

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