Punhos de renda – dizia-se: punhos de renda. Alvitres sofisticados, fermento lógico dos pergaminhos distintivos. Como se houvesse uma refinaria imaginada que destilasse todas as impurezas e para o exterior sobrasse uma imagem asseada, dir-se-ia, assética. Uma pessoa à prova de falhas. Uma pessoa na antítese das pessoas. Um logro, bem vistas as coisas. Ninguém sabia onde estava a refinaria. Ninguém sabia como era o desenho da refinaria. Nem do paradeiro do seu engenheiro-chefe. (Alguns, iludidos pelo temor da fragilidade dos Homens, insinuavam que o engenheiro-chefe era deus, na sua omnipresença.) Eram os bons costumes que pendiam sobre a conduta dos diletos filhos dos punhos de renda. Só a eles era permitida a convivência com a refinaria. Os demais, atirados para a pútrido lugar da boçalidade. Pois por mais que fosse ocasional, a boçalidade selava a inacessibilidade da refinaria. Ficava por saber se os quase-eleitos que ficam a um pequeno patamar da refinaria tinham entoado essa ambição. Aliás, que seja conhecido (e que tenha vindo a palco por testemunhos para memória futura), não havia sido inventariado ninguém de que se pudesse certificar ter passado pelo crivo da refinaria. Mas as pessoas (algumas pessoas) insistiam na existência da refinaria; não sabiam descrevê-la, nem identificar o seu paradeiro – era como se a refinaria fosse uma entidade metafísica, ao jeito dos que creem em deus (“ele existe, mas não sabemos da sua substanciação; existe, apenas, e essa existência pacifica-nos”). E, todavia, os punhos de renda eram sucessivamente evocados. Mas ninguém conseguia descrever os detalhes dos punhos de renda: de que fazenda concreta eram feitos, qual a cor da renda, e se os folhos que se desprendiam das extremidades das mangas eram exuberantemente barrocos ou de uma discrição enfática. Está por provar quem os enverga. E se existem (e se precisam de existir, fundadas sejam as dúvidas sobre este quesito).
31.8.20
Refinaria (short stories #258)
28.8.20
Nascido numa miragem (short stories #257)
Não era o poço sem fundo a gramática onde a fala se afivelava. Nada era tão pequeno – e até o princípio geral da irrelevância (que se abate sobre o comum dos mortais) não era palco bastante para compulsar o anonimato. Mas o anonimato era uma dádiva. Por isso sabia que tinha nascido numa miragem. No ar vagamente irónico de uma miragem, agarrado às suas paredes volúveis, sem o esgar de desdém próprio dos peritos em onfaloscopia. Havia algo de onírico na miragem genesíaca. Como se as mãos, ainda antes de terem destreza motora, pudessem agrafar os verbos e substantivos numa decifração da alma. No dorso da miragem, ainda antes de ter nascido, aprendeu a desenhar os limites do mundo. Viu-o em imagem panorâmica, à mercê da indulgência deixada em legado ainda antes de ter nascido pela miragem que o ensinou a sonhar. Ao menos, já vinha com o tirocínio completo: muitos outros levam uma vida inteira e nem sequer ficam pela metade, à medida que esbarram nos degraus da vida em contrafação. Teve na miragem a fonte da tenacidade. Dessa miragem coerciva, mas heurística, herdou o sedimento da glória antes do tempo (não que a glória importasse, ou que tivesse sido encomendada). De cada vez que ia a jogo, patrocinava o desleixo; sabia que o descompromisso aligeirava a responsabilidade (mas não era alérgico à responsabilidade, que a tinha devidamente inventariada): antes ir a jogo pelo lado lúdico que ele contém, do que ser vítima do paralogismo ao ser colonizado pela espessura iracunda de quem detesta sair vencido. Ter sido hóspede da miragem ensinara a não exacerbar a veia competitiva. Não temos de encontrar um rival que sirva de ponto cardinal (no fundo, antonomásia de si mesmo). Descontando os bons exemplos – de que sempre desconfiou, como desconfiou dos porta-estandartes da “boa moralidade” – não conhecia melhor paradigma do que ele próprio. Sem escorregar para a onfaloscopia.
27.8.20
A coreografia dos lagostins e outras considerações avulsas sobre a aquietação das consciências com a intermediação da publicidade (short stories #256)
(Mote: Se os gurus da publicidade soubessem o que é o surrealismo...)
Os lagostins dançam na companhia de outros moluscos e peixes que enfeitam a banca do supermercado. Os tomates, pimentos, cebolas e demais vegetais ensaiam uns passos para a exultante dança às escondidas. “É quarta-feira, é dia de festa” (na grande superfície comercial). A festa é interpretada pelos cadáveres dispostos (expostos), para gáudio do consumo e das correspondentes necessidades alimentares. Faz-se jus a uma sexualidade insinuada, mas só vagamente reprimida: os mantimentos, em sua cadavérica forma, estão expostos (dispostos) nos palcos diversos da grande superfície comercial para nosso prazer, mas eles, os mantimentos, é que celebram a entrega sacrificial; os lagostins e os moluscos e os peixes e as carnes e os vegetais vão ser comidos e estão em êxtase só de anteciparem o ato. Dir-se-á: é apenas publicidade (da má). Mas toda a mensagem enviada esconde umas entrelinhas, por mais que sejam descobertas pelo exegeta (e por muito que o exegeta liberte a mensagem de umas algemas que só ele terá distinguido). Os lagostins dão o mote para o grande festim que (adivinha-se) tem lugar em hora muito matinal, antes da hora de abertura da grande superfície comercial. Os lagostins e demais mantimentos, nas suas diversas formas e feitios, sobem o tom da festança porque “é quarta-feira, é dia de festa”. E a festa traduz-se na compra dos mantimentos com descontos, com o selo de generosidade da grande superfície comercial. Ó humanos na qualidade de espetadores da publicidade: vão ao supermercado sem constrangimentos de consciência, que a vossa carteira agradece aos mecenas que pagaram a publicidade e, afinal, os mantimentos estão em festa, à espera que os comam. Quem disse que a comida não é um ato sexual?
26.8.20
A emulsão dos fracos (short stories #255)
New Order, “Thieves Like Us”, in https://www.youtube.com/watch?v=R32hZp4qrBk
Eram fracos e não mentiam fingindo que não o eram. Trémulas, as mãos incendiavam o medo com as trevas da fragilidade. Se fossem ao fundo do fingimento, seriam a negação do que são, mentiras de si próprios. Não ocultando a miríade de provas que confirmam a fraqueza, todavia perseguiam-se na mortificação de vítimas; era como se houvesse um sortilégio na fragilidade e não fossem frugais na sua ostentação. De fora, podia ser que adivinhassem um jogo, estulto como são os jogos que se emaranham em descoloridos véus de fingimento: diziam, com desdém, que os fracos procuravam na sua emulsão um módico de comiseração. Era como se a piedade exteriorizada viesse em sua salvação. Já não se importavam de cavalgar nas esporas da fragilidade. Era o salvo-conduto para a atenção dos outros. E eles, os fracos, sabiam que muitos dos que costuravam a comiseração padeciam do mesmo sobressalto – mas não o admitiam, ou, entretidos com a luz forte, não mediam o seu estatuto. Ainda hoje está por saber se a perpétua condição da fragilidade era um anátema, ou apenas um refúgio para serem visíveis aos olhares dos outros. Por perceberem a irremediável fraqueza em que se consumiam, tornavam-na um bálsamo. Ao menos – terciam a seu favor – não se escondiam em véus absolutos que devolviam um rosto baço, um faz-de-conta que não deve nada à humildade de reconhecer quem se é. A sua fragilidade era o código postal que os identificava. Sem pesares de permeio, no caso dos que não transfiguravam a fragilidade em sua fingida fortaleza. Os fracos que o eram por espontânea condição não queriam saber dos olhares exteriores e desdenhavam da compaixão de que fossem destinatários. Reservavam a maldição para as faldas das interiores consumições. Esse era o demónio que os segava.
25.8.20
Quebra mar (short stories #254)
James Blake, “Are You Even Real”, in https://www.youtube.com/watch?v=OL_-bakSRlc
No império das marés vivas, não se importuna a terra. As pessoas não se amedrontam: o quebra mar irrompe mar adentro e dissolve a fúria das marés que podiam tornar o tempo num desassossego. Quem se desliga dos meandros da memória (ou quem a conserva numa fina camada) não se interroga sobre a empreitada vultuosa que foi precisa para construir o quebra mar. Quanta pedra foi preciso arrancar ao subsolo para acamar os exigíveis alicerces do quebra mar? Que cálculos a engenharia industriou para certificar a função esperada do quebra mar e a sua segurança? Quantos braços e quantas máquinas tiveram de subir a palco para amansar o mar? Que águas mansas passaram a ser sulcadas pelos navios que visitavam o porto? Quantas vidas foram salvas pelo quebra mar? Podem uns envelhecidos estafetas da antiguidade, que se autointitulam curadores da natureza sem reparos, protestar contra o quebra mar: argumentam que a áspera língua de terra roubando mar ao adentrar no mar é um espécime artificial, o redesenho da geografia, uma intervenção humana que adultera a ordem natural. Podem contestar a nova gramática das correntes marinhas, protestando contra a ingerência do Homem no império da natureza. Quantos perecimentos seriam precisos para os empedernidos cultores da antiguidade, os zeladores da inviolável natureza, se convencerem que a crueza da natureza pode ser assassina e que, sendo-o, a intervenção humana que a domestica não é uma intromissão? Continuariam advogados de defesa de uma natureza virginal se entre os seus houvesse danos causados pelo mar iracundo? Indiferente a todas as interrogações, e ao pleito entre quem o defende e quem ainda não se convenceu da sua utilidade, o quebra mar avança pelo tempo fora como avança mar adentro, domesticando um mar que outrora nunca foi generoso com esta terra.
24.8.20
O pecúlio grande (short stories #253)
Gorillaz, “Momentary Bliss”, in https://www.youtube.com/watch?v=QTt7301PR5k
O motor grande vocifera contra o asfalto. As vozes não sabem dos abismos que nascem nos fiordes, estão longe. Há manhãs altivas que se desembaraçam no cais acabado de ser noctívago. Paredes-meias com a fala estremunhada, sobem ao sangue os verbos que hasteiam a luz clara. Promete-se um dia fecundo. Um dia diferente, porque a ousadia redige os termos da diferença. Será um dia cheio, o relógio será testemunha de cinquenta e cinco horas (pelo menos). Às vezes pensa que não devia tomar o dia pela ousadia do pensamento, não vá o dia (que não é seu domínio) atraiçoar o pensamento. Não será empreitada impossível se arrebatar os minutos possíveis e os impossíveis, porque as empreitadas que transbordam os limites transfiguram o possível em impossível. Deita ao sal do tempo o sangue que transita pelas veias, o sangue efervescente, a condizer com a frenética encenação que saiu a palco. Os contratempos não chegam a ganhar nome. O dia está prometido à fecundidade. O seu rosto prolixo há de quadrar com a jura alinhavada pelo pensamento sem limites. Como o dia passa pelo crivo de cinquenta e cinco horas, parece interminável. Não sobra tempo para todos os feitos que foram ajuramentados. Se fossem sessenta horas, ou até mais, não seria um fartote. O entardecer arrasta-se, como se fosse aliado da jura congeminada. Não há de faltar muito para resgatar o dia em seu cômputo. Antes do deitar, que o deitar foi arrastado para dentro do dia consecutivo, e não há nisto tresleitura da medida do tempo. O labirinto não provê uma grelha de leitura. Será a honestidade dos pesos usados a servir de juízo. O melhor é esperar pela porta aberta pelo sono. O pecúlio grande está a salvo, arrecadado no silo da memória que não se dissolve no tântalo do sono.
21.8.20
Antes morfina (short stories #252)
Einstürzende Neubauten, “Blume”, in https://www.youtube.com/watch?v=lVZ1c_VMWYM
Do aeroporto, nem as aves voavam. Se ao menos os engenheiros se dispusessem na véspera dos estiradores e ao vespeiro tirassem o ar todo, os demais não seríamos modestos nos encómios. As estradas desenham-se nos contrafortes, entre a luz timorata da alvorada e o mar que bordeja a paisagem ao longe. Sinuosas, cansativas, as estradas. Os corpos, divididos, pertencem aos dois lugares. Estão vacinados contra o vespeiro que os cerca, quotidianamente. Não se precatam, que todo o tirocínio pelo tempo fora é a combustão que incendia a vacina contra o desmodo do mundo. Alguém pressentia, entre os suores frios da rebeldia, que ninguém se furta ao medo que se hasteia nos nós dos dedos trémulos. Por mais que sejamos lestos a reivindicar um lastro de experiência, os contratempos sobrepõem-se. Confecionam-se as juras de não mais lágrimas serem vertidas, mas nem sempre as juras são abrigadas das intempéries. Pergunta-se: e não há um antídoto que vista a dor do seu oposto? Não é por acaso que somos atraiçoados pelos sentidos: são eles que nos combinam com o indesejado, com os degraus em que tropeça uma dor excruciante, o lamento que se desenha nas imediações de um pensamento sem coalho. Um antídoto – diz-se. Reifica-se a morfina. Aval das almas que foram presas da mortificação e a quem foi prescrita a morfina salvífica. Confirmando o princípio geral da hibernação, o telúrico amplexo que omite a dor, nem que seja mercê de um disfarce. Mas o disfarce é uma mentira. Um santuário com numerosa frequência. Alguém pergunta (possivelmente treslendo uma intenção censória na ativação da morfina): quem se insubordina contra a possibilidade de asfixiar a dor, se essa é a serventia da morfina? E a resposta: de acordo; antes a morfina do que as lodosas avenidas em que se enreda o mundo sem carta de recomendação.
20.8.20
Megafone (short stories #251)
Idles, “A Hymn”, in https://www.youtube.com/watch?v=eYGtGcJ8rKw
Fervia a voz tonitruante no pedestal do mundo. Eu corria. Corria o mais que podia. E, todavia, não saía do mesmo lugar, por mais que as árvores rodopiassem a uma velocidade estonteante. Atrás de mim, demónios industriando a perseguição. As vozes sondavam as entrelinhas onde idiomas estranhos vociferavam contra mim. Não sei de que males vinha acusado (mas tenho a vaga impressão, para não recusar um eufemismo, que se vier acusado de algo não será por obra do acaso). A chuva tépida irritava a pele que se escondia do ar exótico. Havia uma certa luxúria implícita. Não o sabia explicar, e até parecia paradoxal. A tensão irrigava os músculos, que se emparelhavam com a adrenalina disforme. Se fosse ao porão de mim, talvez encontrasse demónios escondidos. Dou comigo a parafrasear a loucura: os demónios não se escondem de quem querem amotinar. Estranhamente, a torneira do medo continuava garroteada. Na rua, vozes de crianças em estado infantino. O ludismo não encontra rima com um estado de alma que ultrapassou a feérica voz dos limites. Não me inquietam, as crianças lá fora. Sei que os demónios desconhecem a pureza das crianças – ou assim o disfarçam, temendo que se morderem a pureza das crianças um superior divino qualquer os condene à extinção sem apelo. Ao entardecer, o olhar detém-se no horizonte. E no horizonte só há televisões que reproduzem um caleidoscópio de coisas, todas diferentes em cada ecrã. Não consigo processar as imagens que se atropelam anarquicamente. Talvez não interesse. O olhar sobressaltado faz-se inquisidor das televisões, desliga-as uma a uma. E depois, entronizado conspirador-mor do reino contra a frugalidade das televisões, está capaz de chamar a espada que povoa de paz o mundo de que sou fronteira. Continuo a correr. Já não vejo demónios. O lugar continua o mesmo.
19.8.20
Servos (short stories #250)
Keep Razors Sharp, “I See Your Face” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=f2m7vXwmPfg
Partilha o sal que o teu corpo sorri. Num recanto algures, longe do sol disfarçado de discretos néones com a luz intermitente vertida sobre nós. Que verbo conjugamos? Que sejam órfãos os embaraços que se desenham à frente dos pés; se assim não for, não capitulamos e temos de vencer no xadrez imponderável. A pele musica a noite onde se aninham os corpos exangues. Serve para isso, a noite: fortaleza onde os lábios selam as sílabas quiméricas antes que o sonho seja o beneplácito de sonhos por dentro de sonhos sonhados. E dizemos: seremos servos de um amor matricial, a base de todas as coisas, a peça centrípeta de onde gravita o resto do mundo. Servos, mas de uma servidão que se antepõe à fratura da vontade, dela sua máxima expressão. Não colhemos as flores nos campos demandados. Deixamos, atrás e à nossa volta, a exuberância de flores variadas, e atiramos com a orquestração de cores contra a monotonia dos vendilhões. Sorri, o teu corpo, enquanto se exacerba o magma interior. Tocamos com as mãos os poros acetinados que falam o desejo. Jogamos ao sexo forte. E é como se o mundo interrompesse enquanto espera que a tempestade dos sentidos encontre o seu cais. Repetimos o apoderamento da servidão que desmente o sentido comum, desdenhativo, de servidão. Pois somos servos do que mais queremos ter, uma rosa que enche a mão inteira com o nome que dizemos em sílabas vagarosas, um ao outro. Se fossem as mãos as arquitetas do mundo, elas desenhariam arco-íris até onde não chove, moveriam as nuvens quando os olhos peticionassem o dia soalheiro, trariam um pouco do céu para adocicar os planos terrestres que fossem apóstrofes da carência, seriam poetas imortais. Como se tudo fosse imorredoiro – e é imorredoiro, pois temos nas mãos a medida do tempo e não dizemos o segredo a ninguém.
18.8.20
Vénia desamparada (short stories #249)
Iceage, “The Day the Music Dies”, in https://www.youtube.com/watch?v=14eJfs8O--Y
Os leões precisam de genuflexões. Era o que pensavam os súbditos enquanto eram instruídos para pajear os ditos. A dignidade perdida dissolvia-se pelas ruas da cidade. Os leões, em sabendo do superior estatuto, não se faziam rogados e eram, no que à vassalagem dizia respeito, glutões. Um apóstata em renúncia tinha garantida a cidadania gasta. As liberalidades do reino destinavam-se aos que se privassem de dignidades. Dizer não se pode que a troca era a condizer. Os suseranos distribuíam indulgências consoante métodos arcanos. Ninguém via os súbditos a recuar e a procurar mais além. O fomento da compostura perdia-se no nevoeiro que era da sua dependência o fermento. Até os mancos e os manetas se ajoelhavam diante dos venerandos, e não era método que aceitasse a sujeição aos poucos. A escola não servia ciência de boa gola. Os lentes eram propensos às histórias fantasiosas, mentindo com todos os dentes. Não era por voluntário ato que o faziam, sob pena de sobre eles cair o juízo sectário. E era tão fácil terminar uma carreira sob o ponto de mira de polícia tão ágil. De tão indulgente ser a aparência, os súbditos continuavam a ser anestesiada gente. Os lacaios, devidamente armados com a baioneta da persuasão, faziam dos súbditos perenes catraios. O desassombro era perigoso armamento, como um fantasma da libertação a espreitar sobre o ombro. A periódica vénia era instituição metódica. A hibernação da vontade não caucionava a autenticidade da genuflexão. Os nobres senhores, sem o saberem, destinavam o povaréu ao papel de derruídos cobres. No sono uns dos outros viviam, súbditos e suseranos, metidos no bordão de um pobre pano. Avarento, o tempo jogou-se em forma de contratempo. E o lugar não saiu do imorredoiro vagar. Dele disse o tempo ter ficado para trás como alguém que exagera na mesma pele.
17.8.20
Camaleão (short stories #248)
Fontaines D.C., “Televised Mind”, in https://www.youtube.com/watch?v=lE7vLPSfw6Q
As imensas peles que se escondem sob a pele em exibição. São precisas, todas essas peles. Porque são diferentes os palcos a que temos de subir, em cada um deles estacionando um desafio diferente que só pode ser digerido com uma pele a preceito. Muda-se de pele e – dir-se-á – perdemos aos poucos a coluna vertebral. Não é por acaso, a metáfora. Pode-se manter a inteireza, salvando a medula no que ela tem de autenticidade, mas possivelmente somos presas fáceis no chão onde se terçam as aleivosias, onde não há regras articuladas no tempo e no espaço – onde todos deitam a mão à primeira tábua para não serem suprimidos pela maré que se impacienta. Ou pode-se jogar com os talheres do pragmatismo, mudando a pele de cada vez que o corpo tem de subir a um palco diferente. Por ser tanta a complexidade do presente, são muitos os palcos a que somos convocados. Para sermos diligentes em cada palco, temos de ser a representação da versatilidade – temos de ser atores de corpo inteiro e, no uso de cada epiderme, fazer as vezes de quem temos de ser para não sermos presas a fugir do caçador. Os assanhados cultores da modernidade, embriagados pelo licor da pusilânime pele desmultiplicada, viram o rosto para o lado da maré-baixa; não se importam: já perderam o brio da coluna vertebral há muito tempo, não os podem acusar da virgindade angustiante que assalta os que prosseguem a retidão. Convivem com os imberbes que cuidam da boa saúde da coluna vertebral. Estes só têm conhecimento de uma pele (não necessariamente a pele com que nasceram; pode ser a pele que vestiram a páginas tantas). Interrogam-se: um camaleão não deixa de ser um camaleão? (Pois um camaleão não resulta da transfiguração de um Homem.) Muda-se de pele, e é-se a mesma pessoa?
14.8.20
Quem fala assim (short stories #247)
Idles, “Heel/Heal” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=CxoFW-0ogWQ
Não é da gaguez das ideias; a fala inventa-se no fio do silêncio, quando as ondas segredam os medos do fundo do mar. Oxalá não houvesse interrupções, mal-entendidos, o desprazer de quem é treslido. São contingências fora do alfobre de quem gostaria que o não fossem. O ramo forte da gramática não é o dominante: destapa-se o véu onde se esconde o matricial desapego pelas regras, reinventa-se a gramática com um perímetro de segurança: não se aceitam a jogo as palavras retorcidas. Depois sobra um discurso. A fala que se enovela num papiro valioso, a raridade em função adstrita. Manteúda, a fala em díese que não se vicia nas regras da forma. Diriam: mais importante é a substância, que seja a forma deixada para o lugar onde se amontoam as notas de rodapé. Dos preceitos pragmáticos não entendo nada; não deixo o anel da substância entregue à contumácia, mas não aceito ser vítima da futilidade da forma. Quem fala assim não se esqueceu da forma. A elegância da forma não é de somenos importância. Talvez não quadre com os modismos, nem se afiança na ousadia de vir a ser um modismo. É outro perímetro de segurança: se algum dia viesse investida de modismo, a fala ter-se-ia de transfigurar, abandonar as suas avulsas convenções, remover-se das camadas formais em que se enquistara. Não sei esquecer este preconceito – mas quem não tem as suas irremissíveis fragilidades? Na posse da fala adestra-se um pensamento. Ou apenas uns fragmentos avulsos, palavras que se entrelaçam num sentido inverosímil, metáforas que cavalgam no sentido obnubilado da fala. Não se espere nada de uma fala assim. Não se incomode a gramática dominante, por mais que as palavras rebeldes grasnem em contramão. Soa o improvável, como rima consentida de uma fala assim.
13.8.20
Oitavo lugar (short stories #246)
dEUS, “The Magic Hour” (live at Route du Rock), in https://www.youtube.com/watch?v=TROvAP-i3-g
“Hoje cheguei em oitavo lugar” – e isso era bom, ou apenas medíocre? Malditos rankings que nos enumeram em escalas classificativas que, por sua vez, são o espelho soez do fogo de artifício da competitividade. “Isso – o oitavo lugar – era bom, ou apenas medíocre?” Dependia de variáveis fora do controlo (assim queria acreditar o que chegara em oitavo lugar, talvez fraquejando na confissão de que o oitavo lugar não era motivo de orgulho). Se forem oito a concorrer, o oitavo lugar é o último. Pode não ser sinal de fraqueza: sendo uma maratona, a perseverança posta à prova, é preciso contar os muitos (dezenas, centenas?) que capitularam. Ver a meta no oitavo lugar é uma proeza. “Mas, de que servem as proezas?” Proémios banais, inconsequentes, uma espécie de fala para dentro de si mesmo – pois estas comendas não se ostentam para o exterior. “Tens de te convencer do quê?” Às vezes, a vida esbarra num olímpico processo que exige a decantação de um desafio impensável, o sortilégio que se atravessa no presságio de uma impossibilidade. “E como sabes que se trata de uma impossibilidade? Não estarás a ajuizar por excesso, só para ficares com a glória de um desafio que se fingiu ser uma empreitada impossível? Um disfarce de impossibilidade não chega a ser impossibilidade. Não constitui um desafio transcendente.” O segredo está em ouvir o corpo, ou a alma (depende dos tempos e das vicissitudes). Seja para chegar em oitavo lugar ou para ficar mais para baixo na classificação. “As demandas interiores só me dizem respeito.” “Então não me digas que chegaste em oitavo lugar.” É preciso admitir uma maldição divina (ou lá o que isso seja) que nos arruma no feudo das ordenações numéricas. “Eu quero lá saber que seja o oitavo lugar.”
12.8.20
O hábito sem monge (short stories #245)
Não afundam os centímetros vagos que trazem o lastro do peso insondável. As imagens passam na televisão: dispersas, difusas, sem gramática. Confundo os termos em que se penhora o alvor que podia ser a fundação para o lugar estreito onde o pensamento se desembaraça. As nuvens vertem uma chuva esparsa sobre o teto do mundo. Sem a varanda de onde poderia apreciar os contornos do mundo, fico pela lucidez do meu quarto. O pensamento não ficará órfão. As paredes não se encolhem, por mais que os pesadelos o pressintam. As mãos transcendem a exiguidade do quarto e aplanam a dança sem regras que espraia sobre a imensidão da paisagem. É como se as mãos fossem o promontório destacado a que se daria o nome de varanda. Em vez do olhar embaciado, noto a iridescência da manhã sem o embargo da névoa habitual. Digo: não sei de que fronteiras se farão os usos, mas quero delas ser emancipado para transitar pelo novo, até que o novo se torne habitual. Nessa altura, talvez queira regressar à monotonia – como na indiferença das paredes que amuram o quarto. Não sei do paradeiro da consequência. Distraído com fragilidades sem prova legítima, cobro implacavelmente o preço da anestesia. Às vezes, é como se tudo se passasse ao lado, e eu um equívoco situado num plano errado. Não compreendo as variegações do mundo. Assalta-me um leve aroma de errabundo. A suspeição de errância não tresmalha o sossego. Prossigo com os dias, afinado com a sua coreografia. Às vezes, refugio-me nas ameias onde o mundo se disfarça de si mesmo. E desenho tudo, desde as porosidades de um chão fértil até à cor que quero para o céu. Não me esqueço que preciso de desmentir os hábitos. Não há lugar para monges.
11.8.20
Quantos apocalipses tem um cavaleiro? (short stories #244)
Conjunto Cuca Monga, “Tou na Moda”, in https://www.youtube.com/watch?v=Qhgs7hmxuZE&frags=pl%2Cwn
Um arrepio de distopia e logo se desembaraçam da hibernação os muitos cavaleiros que montam nas esporas do apocalipse. Há cavaleiros para todos os gostos. E apocalipses para todos os gostos. O mundo há de ser sempre, aos olhos destes cavaleiros, uma sucessão de promessas de implosão. Não se pode dizer que sejam cavalheiros com o mundo. Colocam-no perenemente no limiar de um abismo. Cuidam de identificar uma pulsão autofágica: é a espécie que cuidará da sua própria extinção. O apocalipse será evitado se os Homens mudarem. Não podem continuar a ser os agentes de um suicídio antropológico. Quando o tempo é a emulsão de um momento crítico, os cavaleiros convertem o habitual exercício de desconfiança num oráculo onde amanhece uma distopia. O remédio para a distopia é a mudança de mentalidades e a mudança de regras segundo o receituário dos cavaleiros que montam no estigma do apocalipse. Poder-se-ia dizer que o arrepio de distopia convém aos cavaleiros que medram num dos vários apocalipses possíveis. Sem o perfume da desgraça que povoa o cenário distópico, estes cavaleiros não tinham causa. No fundo, os cavaleiros do apocalipse têm de agradecer à ganância dos que gravitam nos seus antípodas: sem a avareza do modelo que recusam, os cavaleiros viveriam de quê? Como os tempos arranhados pela unha da distopia também são lautamente frequentados por teorias da conspiração, aqui fica uma para memória futura: os cavaleiros que nidificam num imenso rosário de apocalipses não seriam ninguém sem a ajuda dos que denunciam. Nunca um adversário foi tão generoso para quem se lhe opõe. O que qualifica o adversário (a estreiteza de vistas e um ensimesmar suicidário). E, todavia, os poderosos continuam a desenhar as costuras do mundo, por muito que os cavaleiros montem num caleidoscópio de apocalipses. O povo anda distraído.
10.8.20
Fim do mundo (desverdade) (short stories #243)
Não disse: queria uma pista para ver o fim do mundo. Diria, em alternativa formulação: quero saber qual é o fim do mundo. Ser um investigador meticuloso da sua ontologia. Vestir uma bandeira sem dono e desmentir as desverdades que se engalanam no estertor em que meneia a verdade imposta. Eu sei: a verdade é um lugar difícil de encontrar, a verdade tão exposta ao pecaminoso destilar do subjetivismo, tão fraturada pela autópsia dos fragmentos em que se decompõe. Não quero saber da objetivação da verdade. Não quero saber dos artífices da verdade, esses predadores que se mostram no pedestal de onde vindicam a origem da verdade. Quero-os denunciar, protestar a falácia que os cobre. Os que querem tão diligentemente fixar as fronteiras da verdade escondem a ilusão do seu contrário: quem tão urgentemente quer dizer as baias da verdade sabe que as mentiras a desfazem por dentro – serão eles os primeiros intérpretes da mitomania? São eflúvios que dispensam o desgaste da atenção. As pessoas fazem o que querem. Não queiram de mim um roteiro. De mim sei o que cobiço no cabo espinhoso que pode ser cada dia. Procurar o fim do mundo, por exemplo. Mesmo que vá desfilando um emaranhado de incógnitas sem fim, cada interrogação como fermento sábio da interrogação seguinte, e assim sucessivamente. O fim do mundo não é onde ele acaba. O fim do mundo é a prova da sua existência. O muro onde vem caiado, ou depressa extinto o mural ao ser transfigurado num quadro onde as cores se sobrepõem na desordem estabelecida. Não queiram de mim uma prova do mundo. Encontrem-na no caudal que vos for servido; pois a imagem do mundo é diferente consoante o olhar que nele se detenha. Esse é o fim do mundo: uma liberdade sem preço.
7.8.20
Duzentos à hora, as árvores com silhueta esbatida (short stories #242)
Não digas que o tempo está à nossa espera. Não sei como hei de ver as costuras da frase. Podias querer dizer que não temos pressa, que o tempo tem o seu vagar e que se formos gulosos, na ânsia de perder o tempo que não se perde, acabamos por tudo deixar à consideração do acaso. Ou podias apenas dizer o contrário, que não podemos esperar porque o tempo está à espera e cada minuto de letargia é um minuto que perdemos no acaso da desatenção. Temos que rodar a duzentos à hora, mesmo que as árvores fiquem com a silhueta esbatida – mas, o que nos interessam as árvores, se elas estão agarradas firmemente pela raiz e nós perdemo-la no sortilégio do tempo? Um certo medo sobe à boca se a duzentos à hora avançarmos pela estrada sem nome onde as árvores, de terem a silhueta esbatida, perdem também o nome. O medo não será por irmos a duzentos à hora, que julgamos ter arnês para a velocidade em excesso. Também não será pela possibilidade de contravenção. Receamos que o tempo seja uma fina camada da memória e que se extinga com a cobiça da velocidade. Vamos a duzentos à hora e não são só as árvores cuja silhueta se esbate: pode ser tudo, até a própria noção do tempo. Oxalá não tivesses dito que o tempo está à nossa espera. Ou então, que eu tivesse entendido que querias dizer que não havia pressa, que o tempo é paciente e somos nós que o adestramos na incomensurável dose de vontade que nos move. Sempre tive medo do tempo. De ser escasso. E sempre quis meter-me a duzentos à hora, para ser mais depressa a casa de chegada. Só então percebia que o curto espaço entre dois pontos longínquos é a definição de tempo perdido.
6.8.20
Torneio (short stories #241)
Uma arena qualquer, onde haja quem se preste à comparação. Dizia: “ensinaram-me que a vida é uma competição.” Mas o princípio geral da concorrência asfixiava a lucidez. Não era preciso entrar em liça contra outros. Se ao menos percebesse o quadro geral, haveria de recomendar a existência que sobreleva sobre qualquer torneio. Mas tudo servia para medrar um torneio. Se não eram as coisas pessoais, como se estivesse continuamente em competição com os outros, eram as coisas mais comezinhas – uma cidade, uma iguaria, um restaurante, um filme, um disco, um livro. Eram escolhas imóveis no tempo: ao longo do tempo, a mesma cidade, a mesma iguaria, o mesmo restaurante, o mesmo filme, o mesmo disco, o mesmo livro. Defendia os seus troféus com unhas e dentes. Mesmo que não soubesse do que falava quando alguém lhe falava de outra cidade, outra iguaria, outro restaurante, outro filme, outro disco, outro livro – porque, desconhecendo-os, não tinha o estalão serviçal da comparação. O casulo em que permanecia era uma forma vetusta de ensimesmamento. Condescendia, num possível ato de tolerância e magnanimidade: nem só o dele tinha certificação de qualidade, mas o dele tinha qualidade superior. Permanecia num contínuo mergulho no poço da negação, pois não é possível puxar o lustro à superioridade da casta porque o terrível subjetivismo (palavra desconhecida do seu vocabulário particular) era um embaraço irremediável. Todos os torneios em que participava militantemente saldavam-se militantemente por vitória. Tinham de se saldar por vitória – pelo menos, no seu âmago. Mesmo que fosse provada a não confirmação da vitória. Por perfilhar a superioridade de si e das suas escolhas, sobre ele se enlaçava um estado de negação perene: uma não vitória tinha sempre a tradução de uma vitória. Era como se fosse uma ilha, sozinho na pequenez das suas escolhas.
5.8.20
Paraquedas (short stories #240)
Os ventos estão cruzados – não se pode dizer que haja um quadrante dominante, ou é a bússola que está embriagada. Não tarda, o corpo vai ser atirado ao precipício. No céu, mais acima, a silhueta da lua esconde-se na claridade estival. Como se o céu tivesse um biombo e, vigilante, a lua se prometesse ao entardecer. Talvez as divagações aplaquem o nervoso miudinho. O vento cantarola lá fora – percebe-se que está iracundo, mas ninguém se atreve a perguntar porquê. A escotilha há de abrir a qualquer momento. Pressente-se o vento desarrumado – o avião parece um navio a atravessar o mar desenhado por uma tempestade (talvez seja o avião que está embriagado). Aposta-se no número de socalcos que medeiam entre a altitude presente e o chão de aterragem. Para disfarçar os sinais de angústia que parecem ter engolido de supetão a coragem marialva, os passageiros contam anedotas. Mas sentem-se as bocas secas, as mãos trémulas – e se não fosse pelo grosso fato que esconde o paraquedas, os corações de alguns queriam saltar do corpo antes que o corpo saltasse do avião. São todos intrépidos aventureiros de aviário. Antes que a escotilha seja aberta, tiram à sorte quem salta em primeiro lugar. É para disfarçar o desejo inconfessável que o avião dê meia-volta e o comandante informe que o vento encapelado não tolera saltos de paraquedas. Não será o caso. O comandante anuncia: “três minutos. Dirijam-se à escotilha.” Ninguém se levanta – receiam que, uma vez em pé, com o avião embriagado (afinal não era a bússola), os corpos sejam atirados contra as paredes metálicas do avião. O mais afoito dá o exemplo. Os outros não podem ficar atrás – a bravura que é apanágio da masculinidade impante é o alçapão que a desfaz a nada. O comandante fala pela última vez: “um minuto. Não se esqueçam dos paraquedas.” Era escusado o eufemismo.
4.8.20
Ecossistema (short stories #239)
Não são as labaredas propositadas, o fogo ateado sem procuração, que desmentem o ecossistema. Não é a lava abundante que bolça do vulcão atávico que deslaça as fruteiras em que se firma o ecossistema. Seria preciso muito mais. Pois o ecossistema é o martelo que percute nos ossos válidos que amparam o corpo. Tem de ser à prova de contratempos. Civiliza labirintos. Mesmo quando decai na sua aparente fragilidade e aos olhos expoentes se mostra como uma península quase a romper com o corpo ancorado nos esteios largos, onde medra o restante solo. O ecossistema não se fez num dia. Não é obra ao acaso (nem de um acaso). Levou tempo a ser cais onde se fundeiam os sobressaltos que investem sobre a insistentemente planeada perfeição, lembrando que é estulto continuar refém da perfeição. É isso o ecossistema: uma chamada à terra, o paradeiro da desligada tocha que incendeia as ilusões. Não há quem sobreviva sem ter como amparo um ecossistema. Mesmo os que o recusam, ou os que não dão conta de serem corpóreos embaixadores de um ecossistema. Nem que tenha o tamanho de um pequeno metro quadrado; o ecossistema transborda as dimensões que se medem através das escalas dos homens. Com a sua intermediação, aprendemos que as medidas não se apuram pelas costuras que se representam em mapas amurados. É da sua água, do seu fogo em infusão, da terra (ora fértil, ora estéril), do odor que empresta rosto ao ar circundante, que o ecossistema parafraseia os alinhavos do seu tutor. Uma espécie de roupa interior só à mostra para quem se refugia no aconchego do ecossistema. Ninguém quer emprestar o descaso da sua intimidade aos demais (a menos que conte o modismo de desnudar tudo da vida própria até à medula constitutiva). O ecossistema é pessoal e intransmissível.
3.8.20
A récita sem quórum (short stories #238)
Podia dizer o que apetecesse. Subido a palco, deparava com o silêncio próprio da ausência. A plateia preenchida por cadeiras vazias, próprias do silêncio intruso que se abateu como uma máscara que soezmente desfez os rostos a matéria anónima. Podia dizer o que apetecesse. Não que o não dissesse se a plateia estivesse repleta. Pelo menos, quero acreditar que não seria desembaraçado de coragem se em vez do silêncio de uma ausência completa houvesse pessoas diante de mim. Diria que sufragamos as lágrimas perdidas nos contratempos avulsos de que vamos sendo predadores. Diria que não nos entediamos se não nos projetos vagos que encontram sempre a mesma esquadria. Diria que somos todos cabeças pensantes, uns com receio de o exibir e outros ajuizando que o dever de recato impõe a modéstia. Diria que não importam os ultrajes, os que vemos perpetrados sobre os outros, nós como apeadeiro por onde passa a ofensa, e muito menos os que nos são dirigidos (sobretudo os que não temos conhecimento). Diria, ainda sem remorso por o ter dito, que há palavras que se fundem na intransigência e, todavia, não ficam paradas à boca de cena. Diria que não deve haver ninguém que fique preso ao paradoxo da indecisão, quando no limiar do abismo fica sem saber se a fala deve ser ativada ou devolvida ao silêncio. A récita podia demorar horas a fio. Quem nunca teve um leve azedar do céu da boca pelo que podia ser dito? Deviam ser orquestradas récitas em modo avulso, haver um lugar próprio – talvez o palco num teatro – onde a fala pudesse romper as algemas que a limita. Como se fosse a fusão do londrino Speakers’ Corner com um austero confessionário. Sem padres por perto, nem mirones que olham para o orador pela lente de um olhar apenas lúdico.