O corsário impertinente sentou-se no banco dos réus. A audiência estava vazia, mas ele sentou-se no banco dos réus, voluntariamente. Descalçou uma botifarra, tão gasta como (veio-se a saber logo a seguir) a peúga rota que deixava o dedo grande do pé à mostra. Se a audiência não estivesse deserta, duvida-se que o corsário se entregasse voluntariamente a juízo. Assim sendo, foi ao julgamento que não tinha juízes. Assim é fácil e o destemor não chega a franquear o limiar da intrepidez.
O corsário montou a encenação. Por sua conta e risco. Fazia de réu, de testemunha – ora abonatória, ora acusatória –, de advogado seu e do que se lhe opunha e até fez lúcidas perguntas no papel dos juízes. Mudava a voz consoante as personagens. Inventava o enredo. Ia seguindo um fio condutor improvável, a consumação de um improviso de que o corsário não sabia ser credor.
Fez questão de assumir a posição de réu. Esta era a maior coragem de todas: não é qualquer um que se entrega ao juízo alheio, sobretudo se estiver convencido da culpa num desarranjo de leis que lhe é atribuído. De outro modo, se houvesse audiência e um pleito reunido num daqueles calhamaços que os tribunais continuam arcaicamente a exibir, talvez o corsário fizesse as vezes de figura contumaz.
Disso seria ele capaz. Saber-se-ia dos dotes que à mitomania se entregava como capataz. Mas a ardósia estava vazia. As figuras tutelares da justiça, noutros preparos, àquela hora decerto saindo da higiene matinal que é preparação para o resto do dia. Não seria o caso do corsário, que não estava em lua-de-mel com a higiene. Os andrajos ajudavam a descompor a figura bestunta. Não se importava de ter sido senhor de um certo donaire num passado que a memória hesitava em codificar. O vinho descompunha o resto.
O corsário foi expulso do tribunal pelos seguranças que faziam a ronda noturna. Foi sendo arrastado em braços, que os derradeiros goles do vinho barato o deixaram quase sem sentidos. Era o que fazia mais sentido, a abolição dos sentidos. Um dos seguranças reconheceu-o de outras andanças. “Olha, é o Amílcar!”, disse, perante a indiferença do outro segurança que limpava os restos de sujidade da sua egrégia farda. “Quem é o Amílcar?”, enquanto continuava na higiene do fardamento. “É um indivíduo que conheci na tropa. Era de boas famílias. Os maus hábitos foram a sua perdição. Agora, não passa de um belisário.”
Amílcar ouvia o diálogo em pano de fundo, como se estivesse num corredor que dava acesso a um comprido labirinto e as vozes figurassem no lado contrário. Balbuciou qualquer coisa e os seguranças chegaram-se a ele. A voz entaramelada debitava umas sílabas desorganizadas. A esforço, conseguiu emitir o pedido: “por favor, quero um estorcegão. Um estorcegão, para saber se consigo sentir.”
Os dois homens não entendiam a súplica. Logo agora, que o melhor estado acessível era a hibernação, o Amílcar queria um estorcegão.
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