Podemos transformar a democracia num valor?
Contra os sequestros de que a democracia é vítima, podemos proclamar a sua salutar adulteração semântica, aceitando-a no mercado dos valores. Contra as ameaças que embaciam a democracia – as que nunca esconderam ao que veem e as que, disfarçadas de propostas democratas, não passam de conspirações para a corroer por dentro –, que sejam instruídos os valores em que se alicerça a democracia e que a democracia seja, ela própria, representada como valor.
Não chega exaltar direitos (e deveres) como património genético da democracia. Não chega emancipar os valores axiais da democracia, vertê-los em compêndios que instruem os mais novos para o significado da democracia (e reeducam os mais velhos, carentes da mnemónica). Nunca é tarde para participar dos que patrocinam entorses a esses direitos e se esquecem do valor em si que é a democracia. Sirva-se-lhes um naco de História, com legendas, se preciso for. Chega de fruir as sementes onde medram os que da democracia dirão, numa astuciosa elegia póstuma, que se exauria em todas as suas imensas fragilidades.
Não chegam, tão pouco, os que se dizem arautos da democracia e fazem tábua-rasa dos valores em que ela se sedimenta. Não se transija com os adeptos de uma democracia que eleva a báscula da exigência e impõe, arbitrariamente, comportamentos aos seus cidadãos. Não se aceite uma democracia que sujeite os sujeitos a comportamentos legitimados pela retórica do “bem comum”, quando a evocação do “bem comum” é apenas uma remota retórica de autojustificação. Uma democracia com este calibre é uma democracia invasiva. Um arremedo de tutela paternalista que esmaece os direitos de que se diz garantia primeira. Adultera-se a democracia quando, sob pretexto de outros pretextos, se convocam argumentos para a tornar musculada. Nessa altura, não se distingue a fronteira entre democracia e autoritarismo.
Concedo: muitas vezes as pessoas infantilizam-se quando exercitam a sua autonomia. Não percebem que existe uma linha ténue entre o exercício das liberdades e o manifesto abuso que emerge da ostentação de egoísmo e de indiferença aos demais. Transbordam as margens. Se estivessem na posse da lucidez não seriam transgressores da sua própria liberdade, se discernissem que o abuso da liberdade individual se paga mais tarde com a restrição das liberdades (incluindo da sua própria). Não se intui que as autoridades maximizem um papel pedagógico, pois depressa as advertências, se treslidas pela população desavisada, se transfiguram em ação musculada, impositiva. Em última instância, são os cidadãos desavisados que contribuem para a abrogação das liberdades, oferecendo o pretexto para a atividade invasiva das autoridades.
Este amplexo entre cidadãos infantilizados (ou, em visão mais crua, tomados pela indiferença dos outros) e sede de poder ávida de o exibir adultera a democracia. As culpas são repartidas, possivelmente em proporções desiguais. Uma democracia que trespassa a esfera dos cidadãos e encena a pose tutelar que se unge a si própria na condição salvífica do cidadão, é uma democracia invasiva. É uma democracia que habitua os cidadãos a serem tutelados por uma entidade que os protege e os convence que, por vezes, a suspensão de direitos e garantias (quantas vezes não revertidos à sua feição prévia à intervenção das autoridades?) é um meio para alcançar um fim. Quando, amiúde, esse estado de exceção se torna uma mal disfarçada finalidade. Uma democracia que reduz o cidadão a uma condição passiva, a antítese dos direitos fundamentais e da posição centrípeta da pessoa.
Esta democracia é um logro. Com outra agravante: uma democracia musculada deixa de se distinguir de adulterações democráticas que convivem, paredes-meias, com poses autoritárias que podem descair para a subversão da democracia. Devemos temê-las, quase tanto como os lobos mansos que se dizem nossos protetores e nos invadem, quase sem darmos conta.
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