Não se proteste a indiferença: o magro pecúlio é inventário que não desonra. Quase ninguém se lembra como somos vítimas da tirania da quantificação. Emprestamo-nos à volúpia dos números, à orgia das quantidades, e somos instruídos a tudo medir pela abundância que nos ensina que três é maior do que dois e o quatro suplanta o três. Depois as bocas mentem. Mentem a si mesmas, como se estivessem anestesiadas pelo baço torpor dos dias que se repetem, irrisórios. Na tradução dos nefelibatas, o mundo é uma contradição de termos insanável, um imenso lugar que cabe dentro de uma minúscula mão de um nascituro. Confundimos os planos. Treslemos as nossas próprias palavras. As bocas são catedrais onde se ensaiam mitomanias que passam por pura verdade. Este é o maior logro: objetivamos a verdade, quando as lentes por que os olhos tiram as medidas são diferentes – e diferentes são os olhares e as baias por onde se movem. Não queremos bocas boçais atiçadas a um úbere malnascido que dá de beber até à embriaguez. Queremos uma boca sem embaraços, irrestrita. Uma boca que não hiberne ao ser julgada pelos que apadrinham os números. Uma boca indomada, esteio das marés que enfeitam o mar, deixando as arestas do medo limadas pelas pestanas que não se intimidam. A boca que fala o que pensa e não a boca que fala o que os outros querem que ela pense. Um lampejo de liberdade que tem em tal boca um albergue à prova de sujeições. A boca honesta que não cede à intimação dos demónios. A boca que se enamora dos magros pecúlios que não disfarçam o paradoxo do exíguo que transcende o tamanho do mundo. A boca que fala os silêncios. A boca que não emudece. A boca patrona nas palavras em forma de poema.
5.11.20
A boca honesta (short stories #278)
Moon Duo, “Lost Heads”, in https://www.youtube.com/watch?v=HlBMsnPi93M
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