25.11.20

O sol inteiro (short stories #282)

Andrew Bird, “Fake Palindromes”, in https://www.youtube.com/watch?v=UF1ZUJbd9nI&pbjreload=101

          Resumia as janelas ao estremecimento da manhã. Consegui. Lá fora ecoava o rumor da cidade, o rumor que a tornava anónima. Contra os rostos fadados, reservava ao silêncio uma torrente em combustão. Dizia, convencido: “sou o sol inteiro”. E ficava quieto, a observar a cor do céu, esse sol que já se notava emaciado, como era próprio de um outono que se entreabria ao inverno. Voltei ao lugar de onde não devia ter saído. (A empreitada estava à espera e eu, hesitante, não a lograva completar.) Fiz repousar a cabeça entre as mãos, os cotovelos como alavanca para uma emulsão lisérgica. Não dava conta de o tempo passar. Era bom que assim fosse, quase sempre. Uma mota de grande alcavala fez o seu grito banal sobrepor-se ao rumorejo da cidade. Ah, se ao menos as janelas tivessem sido calafetadas, se outra fosse a casa e a insonorização viesse com o selo da modernidade, podia fingir que não havia um lá fora. O sol esgueirou-se pela arcada da praça, entrando pela janela. Antecipou-se ao meu pedido. O dia estava inusualmente frio para esta altura do ano. Talvez o sangue precisasse de um pouco de combustão e o sol de mim fizesse a inspiração inteira de que precisava para arrematar a empreitada. (Estava provado que tivera razão antes do tempo, quando aceitei, contrariado, a incumbência.) Podia ser que eu fosse o sol inteiro, ou pelo menos como ele. E depois percebi que era isso que queria ser. As pessoas não ligam ao sol quando ele urde a sua presença por dias a fio. Nem que seja nas vésperas do inverno, quando o sol vai rareando. O ecrã do computador era uma mancha indistinta de caracteres. Os olhos embaciados pelo longor do pensamento não atribuíam inteligibilidade ao amontoado de palavras. Oxalá o sol inteiro de mim fizesse um sol inteiro.

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