A alfândega desce sobre o céu que empalidece. As pessoas recolhem-se a casa, aproveitam a invernia que é convocatória para a lareira. Não se sabe que é feito do sol, declarado contumaz há vários dias seguidos. Parece um tempo britânico, este que tomou conta do tempo outro. Perante o anoitecer antes de tempo, os corpos exangues capitulam. São a expressão visível da convenção que definiu o significado de “mau tempo”.
E, todavia, as pessoas não aceleram o passo. Falta saber se é por estarem cansadas, ou se a mordaça do paradoxo as consome – o “mau tempo” é o salvo-conduto até casa, mas hesitam, como se a casa não fosse o refúgio que precisam. É como se estivessem amotinadas no avesso da vontade e fossem industriadas ao que não querem. Muitos não dão conta da falhada sublevação da vontade, incapaz de derrotar os instintos que se lhe opõem.
Por alturas da noite, já ninguém tem estes pensamentos. A noite foi um penso rápido que trouxe a cicatriz à ferida. Confirmando o pensamento efémero, os olhares já se deitam noutro povoado que reclama a atenção, numa frase dita por um notável e captada pela floresta de microfones (e, supõe-se, de câmaras de televisão), num jantar à pressa apenas para aldrabar o estômago, nas horas que se contam até ser hora da insónia. O ocaso já foi há um par de horas e ainda há quem siga o fuso horário do sol que porfia noutro lugar. O testamento não serve se não para confirmar que o sol se põe em todos os lugares. Ainda que esteja embaciado pelas nuvens acasteladas que impedem a sua inventariação.
Ao atravessar a rua, do lado contrário veem mãe e filha. Esta protesta algo e só tenho tempo para perceber a resposta contrariada da mãe: “não tenhas medo, o sol não foi para outro lugar. Continua no céu. São as nuvens que não o deixam ver.” O apaziguamento confirma na petiz o que açambarca muitas almas que já vão mais adiantadas na idade: o exílio do sol é uma estocada na paz interior de muita gente. Até os mais novos, não suficientemente adestrados nas convenções que hão de subtrair à liberdade o que lhes darão em “socialização”, intuíram que um céu coalhado pelas nuvens é sinónimo de mau tempo.
O sol não o confirma. Ele está sempre acima das nuvens, em qualquer lugar. Confirma que se deita em todos os lugares, apesar do “mau tempo” que possa fazer. Para o sol, está sempre bom tempo. A dialética extingue-se no palco onde diferentes olhares têm aval. O sol deita-se num lugar, mas nunca se deita em todos os lugares. É um boémio, o sol. E garante que há sempre bom tempo, mesmo quando está mau tempo. É um desafio às convenções estabelecidas, das quais o sol, ele próprio, é um esteio.
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