- Um ano raro.
- Deveras.
- É a surda vingança de termos pressa de apressar o tempo. Ela vira-se contra nós por sentir que queremos chegar a ele antes de ele chegar a ser tempo.
- Materializam-se as angústias no ir e vir das ondas que chegam à praia. O restolho, aquela “rosa de espuma” que parece respirar em rima com o rumorejar das ondas, já não conta para o inventário.
- Faz-me espécie que ninguém se insubordine contra os mastins disfarçados de generosos cordeiros.
- O que queres dizer com isso?
- As pessoas parecem anestesiadas.
- Às vezes, a confiança traz esse preço a tiracolo. As pessoas, por confiarem, não chegam a intuir como os que são depositários da sua confiança não são confiáveis.
- O olhar embotado por uma venda. A venda onde se merca a confiança. É a História da humanidade.
- Um dia jurei que deixava de ler jornais.
- Desconfias que os jornais são testas-de-ferro dos que não são dignos de confiança?
- Isso não importa. Só não queria receber no pensamento a enxurrada de notícias que bolçam um paradoxo: somos instruídos a ser mais uma peça na monstruosa engrenagem a que podemos chamar sistema; mas as novas que nos traz a imprensa são pútridas, um pré-apocalipse, como se o sistema estivesse viciado e sem remédio.
- Eu tenho uma teoria: a crise é imorredoira. De outro modo, como podias convencer o cidadão que ele tem de ser governado?
- Isso é um contrassenso democrático! Por que escolhem os governantes se se insinua aos governados que a crise é imorredoira? Votarias tu num inepto?
- Não estás a perceber: a mensagem é outra: no auge da imperfeição humana, votem em nós, já conhecem as nossas fragilidades, mas as alternativas são um pasto de incerteza. Não corram esse risco. Nós somos o mal menor.
- E quem se contenta com um mal?
- Se for menor, o mal converte-se num bem imediato.
- Precisamos de ser apascentados, é a súmula?
- Diz-me tu que não.
- Digo não a esse não. Não concebo um escol de medíocres. A menos que seja este o lugar onde campeia o princípio geral da mediocridade e os medíocres que se entronizam sejam tidos como capazes. Não podemos excluir a hipótese da adulteração de juízos, um viés cognitivo, como qualquer outro.
- Diz-me tu: e quem participa o princípio geral da mediocridade? Quem assume esse lugar centrípeto, quem se investe no papel sobranceiro?
- Não me compete sabê-lo. Eu estou na extremidade do sistema, sou um agente passivo do mesmo, mas em mim não se pratica a lobotomia que exclui o juízo crítico.
- És de uma severidade excruciante. A principal vítima da tua severidade.
- Podemos fazer um jogo de eufemismos, ou apenas discordar do diagnóstico. Tu consideras severidade. Eu ofereço a hipótese da indisponibilidade para ser um manso peão à mercê dos humores dos poderosos.
- Sabes que não consegues mudar o curso dos acontecimentos?
- Não é esse o meu propósito.
- E se te fosse dado um lugar no escol de quem decide: o que farias para mudar os acontecimentos? Se te fosse dada a possibilidade de transfigurar o sistema que te desapraz?
- Não foi esse o fado que me foi atribuído. Tão-pouco o desenvolvi com a madurez. Há os que nascem para mandarem. Há os que obedecem, acriticamente, mansos seguidores das provisões do sistema, e agradecem, ainda por cima. E há os que não renunciam à exigência sem terem de ser arregimentados para o escol dos mandantes. Essa não é a sua função. O exercício da crítica não os atira para o mar das exigíveis alternativas.
- Não te incomodam os passos em falso? Saberes que podias, de braço dado com outros, corrigir esses passos em falso?
- Não. Não é nesse tabuleiro que me movo.
- Não é incongruente?
- Não. É o meu contributo para denunciar a anorexia geral.
Sem comentários:
Enviar um comentário