20.11.20

Poeira que não ganha morada

Ólafur Arnalds, “Oceans”, in https://www.youtube.com/watch?v=oKUxUWY2vLk

Ninguém sabe do cabresto e a miúfa trepa pelas veias sem precisar de rastilho. Reconhece-se a instalação da miséria que empobrece as almas. As almas anestesiam-se diante do medo. Experimentam o diagnóstico dos dias. Trazem um pouco do ar diurno à boca. São escanções do ar limítrofe. Atestam que está fora de prazo. E, todavia, é este ar empestado que combina com o calendário irrenunciável.

Amadrinha-se a esperança, atrelando-a aos dias vindouros de que nada se sabe. Há juras do estiolar do palco misantropo desenhado em apocalípticos pesares, do palco servido como armadilha. Advogados do futuro devolvido desfilam com seu sorriso descompassado, cuidam de nos convencer que estamos dentro de um parêntesis e que amanhã as palavras voltam a adejar, irrestritas, em portadas radiosas. Seremos, então, de novo tutores dos parágrafos, sem estarmos à mercê de mastins sem paradeiro que semeiam o sobressalto contínuo e adulteram a gramática do ser.

Em jeito de paráfrase, emulsionam-se as memórias. Pode ser uma emboscada. Na outra barricada albergam-se os militantemente desconfiados. Não são os de outra igualha, uma recusável igualha, dos que medram num tumular estado de negação. Os que militam na desconfiança metódica peticionam provas. Não aceitam insinuações ou estados de alma ou meras quimeras sem alicerces que apenas têm o condão de virar os espíritos do avesso. Falta o demais. A substância. Para derrotar a ilustração vagarosamente acabada, com a poeira a adejar como se fosse uma espada perene a hipotecar o que tínhamos por hábito ser. Protestam, só para que conste, que já só somos aparentados como o código genético que supúnhamos ser um dado.

Pese embora o receio, a incerteza que se fez casa comum e que se sente como um punhal constantemente engastado na jugular, olha-se para a poeira que se desenha no ar à espera que se canse. Se nos cansamos de nós, se é um cansaço imorredoiro, por que não se há de cansar de nós essa poeira conspirativa? Não se deseja que coabite com a pele exposta, que a fadiga começa a tomar pulso à impaciência. 

Por enquanto somos reclusos, encerrados em nós mesmos, desconfiados de todos os outros. Já não descemos à ágora onde nos fazíamos espécie. Recusamos, até, as palavras ditas. O outrora silêncio pedagógico é agora uma metamorfose de uma cortina de vozes ensurdecedoramente demenciais. À espera que a poeira que empesta os corpos seja exilada.

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