24.11.20

A coreografia dos nómadas sem remédio

Jon Hopkins, “Emerald Rush”, in https://www.youtube.com/watch?v=4sk0uDbM5lc

De exílio em exílio: nem as pedras se enquistavam num lugar. Os lados angulares eram furtivas sombras transfiguradas por dentro. Não havia palavras anódinas. Tinham rostos, e rostos sempre limítrofes, as costuras cuidadosamente desenhadas. Aos rostos vinham coladas palavras destronadas. Não se sabia se as folhas do calendário eram apenas retas tangentes a um modo reconciliado com o devir em fila de espera.

Um rottweiler atrelado ao corrimão da padaria esperava pelo tutor. Eram mais as pessoas que se intimidavam com a sua presença que o cão a dar conta delas. É a mnemónica da vida. Um corpo que se enxerta numa vindima sem geografia enquanto as cepas vagarosamente amadurecem. Ao mesmo tempo, os elementos parecem conspirar sem razão aparente. Se ao menos se soubesse que especialidade poderia cuidar de almas assim inquietas, o resto do mundo ficaria mais perto de um calibre aceitável. Enquanto a utopia não afeia a existência, pode-se convocar o reduto onde o resto do mundo não tem cabimento.

Os perenemente exilados não se dão a um lugar. Consideram-no abusivo. Ou consideram-se indignos de continuarem a pertencer ao inventário desse lugar, se quiserem empregar uma fórmula diplomática. A vegetação desordenada torna-se exangue. Os exilados deixam de a regar meticulosamente e ela cede à indiferença. Amarelecida, apodera-se dos nómadas à força. Emalam os pertences e fazem-se à estrada. Dizem sempre que não têm rota à partida. Desconfia-se que mentem. Um nómada não se exila sob a usura do acaso.

No vocabulário dos nómadas não se inclui a palavra “bandeira”. Ou “identidade” – se a identidade for uma imperativa interiorização de um grupo. Ou sequer “paradeiro”. Porque eles não pertencem a lugares. Quando abandonam um lugar, não lhes ficam embebidos os sinais de memória. É quase como se o lugar não tivesse feito parte do seu inventário. Insurgem-se quando deles se diz “fulano, de lugar sicrano”. A partícula “de” representa o contrabando das almas. Eles não são “de” lugar algum. Nem os lugares ficam com uma sua sequer modesta tatuagem.

Se fosse feita a cartografia da dança furtiva e errante, a coreografia era um emaranhado de pontos e retas unindo pontos. Seria um mapa em cheio. Um mapa cheio. 

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