Deftones, “Change (In the House of Flies)” (at Jimmy Kimmel Live), in https://www.youtube.com/watch?v=LLxXgubxKmI
Há uns anos, quando a sucessão de crises atirou o internacional para o centro das atenções e prosperaram os especialistas em Relações Internacionais no comentário televisivo, um ex-colega de trabalho fez um comentário viperino sobre a pouca qualidade desse comentariado. Devo informar, para sossego dos peritos em Relações Internacionais que aparecem nos media, que o ex-colega era das Engenharias e, ensimesmado no seu ciclópico saber, do qual faria parte a análise da cena internacional, exsudava uma mal disfarçada inveja por os órgãos de comunicação social não recorrerem à imensidão do seu conhecimento e das suas capacidades analíticas.
Vem o episódio a propósito da profusão de peritos em Relações Internacionais que marcam presença no comentário das televisões, das rádios e dos jornais. E vem a propósito da sequência interminável de crises que, sendo crises na verdadeira aceção da palavra, se estendem por todo ou quase todo o mundo. Logo, são internacionais. E como internacionais que são, convocam-se os peritos nas Relações Internacionais.
Há crises e crises. Algumas deixam cicatrizes no bem-estar das pessoas. Outras há que saem da órbita meramente material e causam a dor pungente associada aos que perderam a vida como vítimas colaterais de uma crise. Por terem diferentes naturezas e consequências, as crises devem ser sopesadas. Quem se dedica à análise das crises não pode usar a mesma grelha para (por exemplo) a crise da Zona Euro, a crise pandémica, a crise dos refugiados, a crise do comércio internacional causada por um capricho do presidente dos Estados Unidos, ou a recente guerra dos doze dias que era entre Israel e o Irão mas acabou depois de uma intervenção musculada dos Estados Unidos. Umas são crises. Outras vestem-se de guerras.
O estalão das crises é diferente. As crises que causam mortos são convocadas para o infindável rosário de guerras que trespassa a História da humanidade. Se se juntarem os seus efeitos duradouros, mesmo que já não envolvendo diretamente o sacrifício de vidas humanas, talvez se comece e perceber a necessidade de os peritos de Relações Internacionais aceitarem que estão a precisar: (i) de uma reciclagem, para não se aterem aos efeitos que resultam da espuma dos dias; e (ii) de um banho de interdisciplinaridade, para se embeberem num olhar transversal que ultrapasse as fronteiras habituais das Relações Internacionais (que já são multidisciplinares por inerência).
Por outras palavras: os especialistas em Relações Internacionais, com destaque para os que possuem um perfil mediático, deviam começar a entender que a análise não parte apenas das teorias canonizadas pela ciência em que atuam. Este é um viés que se tornou nítido nos economistas, quando, ensimesmados na sua ciência, desprezaram os contributos de outras ciências sociais e humanas e se especializaram em diagnósticos e prognósticos invariavelmente errados. Este viés é cada vez mais nítido nos peritos de Relações Internacionais que marcam presença nos órgãos de comunicação social. Presos à realidade, não a questionam. Por exemplo, na amostra de intervenções televisivas, radiofónicas e em jornais de que tive conhecimento, ainda não vi formulada esta pergunta: é concebível que uma guerra termine na sequência de um ato militar de um interveniente (que só então assumiu essa condição) alicerçado na força esmagadora? Ou, numa versão alternativa: que paz é esta que vem depois de um ato de guerra que se serviu da força excessiva?
Não é preciso sermos sabedores de Relações Internacionais, ou de Estudos de Segurança ou de outros saberes afins, para reconhecermos que o exército dos Estados Unidos é o mais poderoso do mundo. Muito embora a História do pós-Segunda Guerra Mundial seja fértil em intervenções militares do exército mais poderoso que acabaram por fracassar, para grande humilhação do país, hoje as guerras são diferentes. O músculo não é só o armamento; o músculo é cerebral, com o capital tecnológico que abre uma miríade de possibilidades e desequilibra o plano em desfavor dos que não têm acesso à tecnologia de ponta. Na recente guerra dos doze dias, foi um outsider todavia sempre presente – os Estados Unidos – que, com uma intervenção muito musculada, forçou a paz. Daí retomar a pergunta formulada no fim do parágrafo anterior: uma paz forjada depois de o mais forte ter esmagado o mais fraco através de um ataque com precisão cirúrgica, castrando as capacidades de beligerância do mais fraco, esta é uma paz aceitável e genuína?
Os peritos de Relações Internacionais dirão que sim, presos que estão aos seus pressupostos, um dos quais entronca numa visão cínica da humanidade. Eu, que até sou pessimista antropológico, não consigo compreender a euforia de muitos dos especialistas de Relações Internacionais que vieram comentar a paz imposta pela força dos Estados Unidos. Depois de amputar o oponente, é fácil convencê-lo que a paz é irremediável (até ver).
O que falta às Relações Internacionais é um diálogo com outras ciências sociais e humanas. Falta enxertar Filosofia na sua análise. Os cultores das Relações Internacionais teriam muito a aprender com a Filosofia Moral, que não só ensina a pensar e a ter perícia nas perguntas que se levantam, como os confronta com os dilemas morais que são um compasso para entender comportamentos humanos. Este enxerto de Filosofia poderia levar os peritos de Relações Internacionais a uma análise desempoeirada, sem ser determinada por pré-conceitos que são tidos como adquiridos e cerceiam o espírito crítico que os devia acompanhar na sua pedagógica função quando aparecem nas televisões, nas rádios e nos jornais.
Dizem que a Filosofia complica as coisas. Estou convencido do contrário. Sem a ajuda de outras ciências sociais e, em especial, da Filosofia, muita da análise dos peritos de Relações Internacionais que aparecem nos media tropeça na metáfora que os Casseta & Planeta (uma banda de rock satírico brasileiro dos anos 90) usaram para estereotipar o surfista (ler com sotaque brasileiro): “se eu não saquei nem o prefácio, imagina o ‘pré-difícil’”.