30.6.25

Relações Internacionais, mas do avesso

Deftones, “Change (In the House of Flies)” (at Jimmy Kimmel Live), in https://www.youtube.com/watch?v=LLxXgubxKmI

Há uns anos, quando a sucessão de crises atirou o internacional para o centro das atenções e prosperaram os especialistas em Relações Internacionais no comentário televisivo, um ex-colega de trabalho fez um comentário viperino sobre a pouca qualidade desse comentariado. Devo informar, para sossego dos peritos em Relações Internacionais que aparecem nos media, que o ex-colega era das Engenharias e, ensimesmado no seu ciclópico saber, do qual faria parte a análise da cena internacional, exsudava uma mal disfarçada inveja por os órgãos de comunicação social não recorrerem à imensidão do seu conhecimento e das suas capacidades analíticas.  

Vem o episódio a propósito da profusão de peritos em Relações Internacionais que marcam presença no comentário das televisões, das rádios e dos jornais. E vem a propósito da sequência interminável de crises que, sendo crises na verdadeira aceção da palavra, se estendem por todo ou quase todo o mundo. Logo, são internacionais. E como internacionais que são, convocam-se os peritos nas Relações Internacionais. 

Há crises e crises. Algumas deixam cicatrizes no bem-estar das pessoas. Outras há que saem da órbita meramente material e causam a dor pungente associada aos que perderam a vida como vítimas colaterais de uma crise. Por terem diferentes naturezas e consequências, as crises devem ser sopesadas. Quem se dedica à análise das crises não pode usar a mesma grelha para (por exemplo) a crise da Zona Euro, a crise pandémica, a crise dos refugiados, a crise do comércio internacional causada por um capricho do presidente dos Estados Unidos, ou a recente guerra dos doze dias que era entre Israel e o Irão mas acabou depois de uma intervenção musculada dos Estados Unidos. Umas são crises. Outras vestem-se de guerras.

O estalão das crises é diferente. As crises que causam mortos são convocadas para o infindável rosário de guerras que trespassa a História da humanidade. Se se juntarem os seus efeitos duradouros, mesmo que já não envolvendo diretamente o sacrifício de vidas humanas, talvez se comece e perceber a necessidade de os peritos de Relações Internacionais aceitarem que estão a precisar: (i) de uma reciclagem, para não se aterem aos efeitos que resultam da espuma dos dias; e (ii) de um banho de interdisciplinaridade, para se embeberem num olhar transversal que ultrapasse as fronteiras habituais das Relações Internacionais (que já são multidisciplinares por inerência).

Por outras palavras: os especialistas em Relações Internacionais, com destaque para os que possuem um perfil mediático, deviam começar a entender que a análise não parte apenas das teorias canonizadas pela ciência em que atuam. Este é um viés que se tornou nítido nos economistas, quando, ensimesmados na sua ciência, desprezaram os contributos de outras ciências sociais e humanas e se especializaram em diagnósticos e prognósticos invariavelmente errados. Este viés é cada vez mais nítido nos peritos de Relações Internacionais que marcam presença nos órgãos de comunicação social. Presos à realidade, não a questionam. Por exemplo, na amostra de intervenções televisivas, radiofónicas e em jornais de que tive conhecimento, ainda não vi formulada esta pergunta: é concebível que uma guerra termine na sequência de um ato militar de um interveniente (que só então assumiu essa condição) alicerçado na força esmagadora? Ou, numa versão alternativa: que paz é esta que vem depois de um ato de guerra que se serviu da força excessiva?

Não é preciso sermos sabedores de Relações Internacionais, ou de Estudos de Segurança ou de outros saberes afins, para reconhecermos que o exército dos Estados Unidos é o mais poderoso do mundo. Muito embora a História do pós-Segunda Guerra Mundial seja fértil em intervenções militares do exército mais poderoso que acabaram por fracassar, para grande humilhação do país, hoje as guerras são diferentes. O músculo não é só o armamento; o músculo é cerebral, com o capital tecnológico que abre uma miríade de possibilidades e desequilibra o plano em desfavor dos que não têm acesso à tecnologia de ponta. Na recente guerra dos doze dias, foi um outsider todavia sempre presente – os Estados Unidos – que, com uma intervenção muito musculada, forçou a paz. Daí retomar a pergunta formulada no fim do parágrafo anterior: uma paz forjada depois de o mais forte ter esmagado o mais fraco através de um ataque com precisão cirúrgica, castrando as capacidades de beligerância do mais fraco, esta é uma paz aceitável e genuína?

Os peritos de Relações Internacionais dirão que sim, presos que estão aos seus pressupostos, um dos quais entronca numa visão cínica da humanidade. Eu, que até sou pessimista antropológico, não consigo compreender a euforia de muitos dos especialistas de Relações Internacionais que vieram comentar a paz imposta pela força dos Estados Unidos. Depois de amputar o oponente, é fácil convencê-lo que a paz é irremediável (até ver). 

O que falta às Relações Internacionais é um diálogo com outras ciências sociais e humanas. Falta enxertar Filosofia na sua análise. Os cultores das Relações Internacionais teriam muito a aprender com a Filosofia Moral, que não só ensina a pensar e a ter perícia nas perguntas que se levantam, como os confronta com os dilemas morais que são um compasso para entender comportamentos humanos. Este enxerto de Filosofia poderia levar os peritos de Relações Internacionais a uma análise desempoeirada, sem ser determinada por pré-conceitos que são tidos como adquiridos e cerceiam o espírito crítico que os devia acompanhar na sua pedagógica função quando aparecem nas televisões, nas rádios e nos jornais.

Dizem que a Filosofia complica as coisas. Estou convencido do contrário. Sem a ajuda de outras ciências sociais e, em especial, da Filosofia, muita da análise dos peritos de Relações Internacionais que aparecem nos media tropeça na metáfora que os Casseta & Planeta (uma banda de rock satírico brasileiro dos anos 90) usaram para estereotipar o surfista (ler com sotaque brasileiro): “se eu não saquei nem o prefácio, imagina o ‘pré-difícil’”.

27.6.25

E tu, sabes quem foi “o Che”?

Victor Torpedo & the Pop Kids, “Friends”, in https://www.youtube.com/watch?v=CRjdtR5R0Rc

O ricaço estacionou o Porsche num lugar vago, sobranceiro à acampada de jovens a favor da libertação da Palestina. Os jovens, num momento de torpor entre os pregões da ordem, ficaram de olho em riste. Do meio dos acampados soltou-se um “fascista” tímido que foi o mote para a propagação das várias gargantas que só precisavam de um testa-de-ferro para se libertarem do silêncio.

Filho da puta fascista. Põe o popó noutro sítio.

Vociferou uma voz feminina, enquanto a turba se juntava à medida que o ricaço tirava os pertences do Porsche, mantendo a fleuma.

- Como tens a coragem de estacionar aqui essa merda?!

Protestou outra voz, na dupla indignação de ver um sinal exterior de riqueza na vizinhança da acampada e por causa da fleuma do ricaço, que continuava indiferente aos insultos.

És mesmo filho da puta. Tão filho da puta que nem o insulto à tua mãe te incomoda. É típico dos porcos capitalistas: vendem até a mãe, se for preciso.

As vozes subiam de tom e o cerco ao ricaço também. Pela primeira vez, o ricaço sentiu-se incomodado ao ouvir as palavras que lhe eram destinadas, pelo indisfarçável esgar ao ouvir os ditos sobre a sua mãe.

Se não tiras daí a porcaria do popó vais ter uma surpresa quando regressares.

Assim crescia a animosidade contra o ricaço que teve o topete de estacionar um Porsche – um Porsche, homessa! – mesmo nas barbas dos jovens que já não iam a casa há três dias e três noites, tudo pela causa do povo palestiniano e contra o genocídio dos judeus com a complacência de todo o mundo ocidental – de todos esses fascistas.

Vai embora e leva o carro de uma vez por todas, seu porco judeu, genocida!

Enquanto estas palavras ecoavam, uma pedra voou e por pouco não atingiu o ricaço. Até que o homem de meia idade, não conseguindo aguentar mais a fleuma, se dirigiu à multidão que, passo a passo, aproximava-se com propósitos ameaçadores:

Essa agora, vou-me embora porquê? Há aqui algum sinal de proibição de estacionamento?

Inquiriu, já cansado de tanto assédio e de ouvir impropérios que não passavam de adivinhações que vinham a jeito das causas defendidas pelos acampados.

Filho da puta, estás a provocar! Estamos aqui em protesto contra os teus amigos genocidas e tu vens parar o Porsche mesmo à nossa frente. Maldito provocador, vais ter o que mereces!

Diga-me lá o que mereço.

O ricaço, que tinha um porte alto e era espadaúdo, não ficou indiferente à ameaça, desviando-se do caminho para olhar de frente para os manifestantes que estavam a entrar no seu raio de ação.

Você aí – apontando a dedo na direção de um jovem – sim, você que tem a t-shirt do Che Guevara, sabe-me dizer quem foi Che Guevara?

Os jovens abrandaram o passo, perplexos com a coragem física do ricaço e com a pergunta inesperada. Nenhum estava preparado para responder à pergunta, a atestar pelo silêncio que se fez. O ricaço, impaciente com os preconceitos gratuitos que lhe eram imputados, disse:

É impressionante. Não me conhecem de lado nenhum. Há aqui alguém que sabe o meu nome? 

(Perante o silêncio contínuo, depois de olhar com cuidado de um lado para o outro, retomou)

Era o que eu pensava. Sem me conhecerem, já me chamaram fascista, judeu, genocida e foram insultuosos com a minha mãe. Sem me conhecerem! Apenas porque estacionei aquele carro?! Deviam proibir os carros daquela marca? Ninguém quer saber quem sou? O que penso sobre a causa que estão a defender nesta praça? Não preciso de saber mais nada sobre o vosso entendimento de liberdade. A mim não me surpreende. Lamento que vocês, que são tão jovens, reproduzam comportamentos atávicos. Não me surpreende que nenhum de vocês saiba quem foi Che Guevara. Leiam coisas úteis para conhecerem a História e as pessoas. Para não terem um pensamento comandado por outros. Para não andarem a repetir os pregões dos outros. E não se consumirem em preconceitos gratuitos.

Os jovens, intimidados pelas palavras agrestes do ricaço e pela sua coragem física, dispersaram e deixaram-no a falar sozinho. O que também foi sintomático.

26.6.25

O cavalo de Troia que a cidade ganhou de presente

New Order, “Transmission” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=KhIstqstFNg

Não sabiam o que era o cavalo de Troia. Parecia um presente – mandam os preceitos da boa educação que não se rejeitam presentes, não vá a recusa ser entendida como uma deselegância que ofende quem os ofereceu. O intenso sabor da curiosidade era a sela em que se situavam os que inspecionavam o cavalo de Troia desde o exterior. Dizem que a curiosidade pode matar os gatos, mas deviam estender o anexim aos humanos que se consomem numa insaciável sede de abrir os presentes de que sejam destinatários.

O cavalo de Troia não tinha remetente. Era um presente anónimo. Não era altura para desconfiar. Esse é o comportamento habitual quando a humanidade congemina a sua atuação: a autodesconfiança é sintomática. Desta vez, a iminência do presente forçou os presentes a suspenderem o metódico pessimismo que sobre a espécie vertem. E nem sequer a contingência inerente ao anonimato os demovia da sua infatigável curiosidade. Em seu abono, elucubraram que nem tudo que é anónimo vem vestido de ameaça e de efeitos malignos. Ele há denúncias anónimas que se fundamentam na hipocrisia dos denunciantes, ou na convicção que estão a semear rumores sem fundamento. Mas também há anonimatos que não se reveem nesta distopia e se manifestam em elogios bem digeridos.

Empurraram o cavalo de Troia para dentro da cidade. O momento era tão solene que exigia comparência geral na praça mais ampla da cidade. As pessoas foram convidadas para a cerimónia. Seria no dia seguinte. Um contingente de militares fortemente armados estava de atalaia ao cavalo de Troia ainda embrulhado. As pessoas podiam admirar o presente na sua forma exterior. Muitos não dormiram e prolongaram a véspera até ao dia marcado para a solenidade. 

As forças vivas da cidade aprumaram-se o melhor que souberam – fatiotas bem apessoadas, medalhas à lapela para os militares agraciados, as senhoras com penteados de última hora e os sacrossantos sapatos de tacão alto a perturbarem o caminhar na calçada, a banda filarmónica a fazer das tripas coração para disfarçar as desafinações, o edil que abriu uma exceção ao padrão dos tempos recentes e não acordou com a dor de cabeça consequente à embriaguez de véspera, uma parada militar preparada para ostentar a força que, só de ser sentida, dissuadia os inimigos que o quisessem vir a ser (esse era o convencimento geral). O edil fez um discurso breve e que não ficou emoldurado nas memórias. Ouviu-se uma salva de tiros  que corroborava a audácia das forças armadas em presença. As senhoras tossicavam com aqueles meneios femininos que aprenderam nos cursos de etiqueta para senhoras da alta sociedade e que ajudavam a disfarçar o nervosismo. Algumas das forças vivas da cidade não sucumbiram à canseira do protocolo e foram deixando cair o sono a tiracolo. 

Até que o silêncio foi endeusado por uns segundos, aqueles segundos que precederam o desembrulhar do cavalo de Troia depois de o mestre de cerimónias ter anunciado o momento tão esperado. Quase se se conseguia escutar o palpitar uníssono dos corações de todos os cidadãos (independentemente da sua condição social e política) – não houve silêncio tão democrático como este na história da cidade. Um dos ícones da cidade, um veterano que esteve em guerras em nome da pátria, acompanhou o edil no descerramento do presente. Quando o cavalo de Troia foi desembrulhado – tarefa que demorou quase cinco minutos e exigiu a colaboração de uns contínuos do município recrutados à pressa –, a estrutura do cavalo desabou, como se a exposição aos olhares dos circunstantes tivesse ativado um súbito efeito de erosão que desfez o presente em cinzas.

Os dias que se seguiram foram de incredulidade. Não se falava de outra coisa. Quem teria sido o autor da oferta e que propósito teria ao consumar um presente que se desfez em cinzas assim que foi desembrulhado? Começaram a desfilar as teorias da conspiração. Os lugares-comuns estavam efervescentes. Assim como assim, a voz do povo adverte para a possibilidade de presentes envenenados. 

À cautela, mandaram analisar as cinzas em que se decompôs o cavalo de Troia. Os dias seguintes foram de ansiedade. O que diriam as cinzas sobre a possibilidade de envenenamento da cidade?

25.6.25

Quando a mentira não é anã

The Psychedelic Furs, “Heaven”, in https://www.youtube.com/watch?v=4G_CAYf-itw

Do ditado se aprende que curta é perna da mentira. Deduz-se, da sagacidade popular, que a mentira é quase sempre apanhada numa armadilha qualquer. Ou porque os mitómanos se enredam numa teia complexa e não é difícil darem um passo em falso quando se estilhaça uma das peças em que a mentira se tece. Ou porque o mentiroso nem a mentir é diligente, ou porque é apenas um amador da mentira. Ou porque a mentira é tão obnóxia que se denuncia a si mesma. Ou, apenas, porque os cânones da pureza moral ensinam que não compensa mentir e os mentirosos são pescados pela rede em que labora a imensa maioria dos castos da boa-fé.

Seria anã, a mentira, se estes fossem os preparos que a retratam. No entanto, as mentiras acastelam-se: às vezes, reforçam-se umas às outras, outras vezes negam a mentira anterior sem que a verdade seja devolvida. Outras vezes, o fio condutor das mentiras leva os intervenientes a um estado de alucinação que nenhum reconhece: de tanto insistirem no rosário de mentiras, já as têm por verdadeiras. Os (alegados) puristas da verdade contestam os mentirosos quando não estão nesta posição. De outro modo, sentam-se no lugar dos mitómanos e abreviam a mentira para passar sob o escrutínio dos defensores da verdade quando intuem que podem tirar partido da mentira. Deste posto de observação, argumentar-se-á que os mentirosos não coincidem todos ao mesmo tempo na carnificina da verdade, tal como não há uma só circunstância em que todos se abraçam à verdade.

O problema torna-se mais complexo se ao observador chegarem rumores de mentira, ou a impressão de que alguém está em débito com a verdade. Ou naqueles casos em que há gente dúbia presa a um emaranhado ético que se dispensa da verdade por omissão da mentira. De acordo com a prescrição do Estado de direito, até prova em contrário ninguém é mentiroso. Ainda que alguém seja apanhado com a boca na mentira, os pudores da relativização tendem a amortecer o seu efeito: são as circunstâncias que atenuam a mentira, a posição de ignorância que impede de pesar todos os elementos que contribuem para distinguir a mentira da verdade, ou outros casos e acasos que servem de máscara à mentira, disfarçando-a do que não é. 

A mentira presta-se à condescendência. Por efeito de uma solidariedade corporativa: toleramos a mentira porque, num salto mortal sobre a consciência, admitimos que somos assíduos na sua visitação. Ou porque podemos precisar da indulgência dos outros quando o futuro chegar e em nós for lançada a âncora da mentira. 

A mentira, mesmo quando é anã, é um gigante que se disfarça atrás do nanismo. Como se fosse possível a um elefante disfarçar-se de formiga. O primeiro de abril é apenas a exceção.

24.6.25

O tiro e a culatra

Broken Social Scene, “Sweetest Kill”, in https://www.youtube.com/watch?v=2g77t_CnYM8

Assim como as calças com bolsos rotos, um tiro devolvido pela culatra. Diga-se, em abono da compreensão, que alguém terá sabotado a culatra para o tiro sair pelo lado contrário do esperado. Já os bolsos rotos das calças explicam-se pelo seu estado puído. 

Muitas vezes somos as vítimas autoinfligidas de tiros que saem pela culatra: quando as palavras se amotinam contra quem as profere; quando vamos à frente do tempo e ele conspira contra a nossa audácia; quando fugimos do medo, mas não somos capazes de fugir das suas garras; quando julgamos ter posto toda a diligência para evitar um acontecimento, mas ele ganha vontade própria e tem lugar sob o nosso olhar de impotência; e, em geral, quando somos responsáveis pelos atos que não tiveram as consequências esperadas, e essas são inesperadamente dolorosas. 

Em vez de balas, devíamos usar pólvora seca. Não nos garante um efeito tonitruante, mas deixa-nos a salvo da carnificina a que estão expostos os corpos quando são trespassados por balas furtivas. Porque é de furtivas balas que se fala quando elas se viram do avesso e se projetam contra quem as dispara. Em vez de balas, pólvora seca – já que não se ousa peticionar pela extinção dos revólveres. 

Ou então, são as metáforas, o seu efeito devastador, que conspiram contra a indulgência que circula pelas veias. Os fortes ensebam as comendas que os distinguem e exercem a força que ostentam. Só não podem estimar a vingança dos fracos. Não sabem se ficaram dizimados, ou se escondem uma reserva de forças e um exército de vitimas sacrificiais para espalharem o caos que interrompe a glória extemporânea dos fortes. 

Estes podem estar ufanos com o poder da artilharia, um espelho da força que exercem sobre os demais. Mas não conseguem prever se, no final das contas, a culatra estava bloqueada e o tiro saiu do avesso.

23.6.25

Outsiderness (short stories #491)

Balthvs, “Year of the Snake”, in https://www.youtube.com/watch?v=XBY2XpioNP0

          Não ponhas salsa no arroz. A sala precisa do aroma neutro que exsuda da sinceridade. Não queiras que o lugar sala seja deturpado. Na cartilha dos amadores, encontras o dicionário de frase feitas. As pessoas precisam de mais exigência. Podem ser outsiders sem deixarem de pertencer. Precisam de descobrir a capacidade para se verem por fora de si e assim encontrarem um espírito crítico: nós, como nossos primeiros críticos. Pois nunca somos um acabamento definitivo. Todos somos sujeitos de aprendizagens ininterruptas. Para o continuarmos a ser, não podemos ser reféns de uma servidão. Não podemos ser apenas os que se emprestam à influência de quem costura os dias. Ai de quem aceite o arnês de bom grado, iludido por sofisticadas explicações que devolvem os benefícios para a nossa segurança às certezas categóricas. Em vez de usarmos à lapela a medalha aposta aos eternamente bem comportados, movemo-nos pelos corredores mal iluminados onde as conspirações transpiram pelas paredes abaixo. Não são conspirações gratuitas, ou o conspirar apenas pelo conspirar. É uma ginástica mental com outros propósitos. Repito: não ponhas salsa no arroz; sobretudo, não o faças se o arroz ainda precisar de cozedura. Não queiras estragar a salsa – e, depois, o arroz. A simplicidade dos gestos não se encena. Só é simplicidade quando são espontâneos. Por fora destes espontâneos gestos, tens o chão armadilhado por sofisticadas teorias que se opõem à filosofia pura. Podes dormir sem ser o espaço onde lavram os medos que tudo paralisam. Ou podes sair à noite, por dever de insónia, e caminhar no avesso das ruas até que saibas o que é despertencer. Não te esqueces de desamarrar as peias que sobram dos estilhaços pretéritos. A empreitada exige um descompromisso com os vultos que têm de ser exorcizados. E recorre sempre à mnemónica da salsa e do arroz.

20.6.25

Queremos todos ser muito amados por muitos?

Max Richter, “And Some Will Fall”, in https://www.youtube.com/watch?v=m1jhNC2mh20

O amor é um bem raro. Deve ser tratado com os cuidados que merecem os bens que são raros. Se é um bem rarefeito, quando o temos nas mãos não o podemos esbanjar. Ele há tantas almas empenhadas na angústia por terem sido apanhadas pela armadilha do desamor.

A relação entre uma pessoa e o amor tem dois sentidos. A pessoa como destinatária do amor e a pessoa como o tratador do amor. No primeiro caso figura como sujeito passivo, cuidando do amor que alguém lhe dedica. No segundo caso – o mais exigente –, os cuidados de quem tutela o amor trazem a sensação de fragilidade que parece diminuir o tamanho do corpo. Às vezes, é uma relação assimétrica. Outras vezes, o sujeito passivo sopesa o amor que lhe é dedicado de maneira diferente daquele que lhe dedica esse amor. Os mal-entendidos podem arrefecer um amor, podem-no matar, até. Se um mal-entendido não sobreviver ao amor, o amor é treslido ou deixou de existir.

Sendo um bem que rareia, as pessoas deviam andar à procura de muito amor. Quantos mais pessoas os amem, maior o amor que lhes é destinado. É um erro. Primeiro, estamos hipotecados às convenções que ditam a monogamia como padrão de conduta. Segundo, há diferentes tipos de amor: o amor conjugal, o amor filial, o amor maternal e paternal, o laço do amor familiar, o amor abstrato, antropológico. Haverá amor na amizade? (E a amizade tem de existir no amor, ou são sentimentos separáveis?) A soma de todas estas parcelas constitui o amor.

Aqueles que querem ser amados por muitos deviam ser processados por atentado ao valor do amor. Sua é a responsabilidade pela banalização do amor, que deixa de ser um sentimento raro e se confunde com outros sentimentos. É como a amizade. Há pessoas que se orgulham de terem dezenas, centenas, no caso dos mais populares (e ambiciosos), milhares de amigos; e que mudam de amigos como quem muda de roupa interior, depressa encomendando amigos de ontem para o lugar do esquecimento. Aqueles que desejam ser amados por muitos nunca chegaram a saber o que é o amor. Não teriam tempo que chegasse para usufruir todo o amor de que se julgam credores. Corrompem o amor e deviam ser processados pelo crime de especulação sentimental, como acontece aos que açambarcam bens para os venderem caros em momento de escassez. Esses são os responsáveis pela usura do amor. 

De tanto ser treslido, um dia destes o amor deixa de pertencer ao dicionário das almas.

19.6.25

Nervos de aço (short stories #490)

TV on the Radio, “Wolf Like Me” (live at Glastonbury 2011), in https://www.youtube.com/watch?v=tYAyt8XV7Lc

          As agulhas alvejam os pacientes. Mas eles não se movem. Não exibem queixumes – outros que tais, peritos no fingimento. Dizem, sem que alguém os ouça: não damos parte de fraco. Exasperam os beligerantes que dispararam as agulhas. Ficam sem saber se as agulhas alvejaram quem tinham de alvejar no sítio certo, ou se ficaram por conta de um ato malogrado. Para não sobrarem dúvidas, preparam outra ronda de artilharia. Serão mais meticulosos para não acertarem ao lado, que não é acertar nem coisa nenhuma (a não ser um desperdício de recursos, que as agulhas estão pela hora da morte). Os pacientes já estavam à espera da segunda ronda. Por se mostrarem pacientes e não darem parte de fraco, sabiam que os agressores iam recorrer a uma segunda dose de artilharia. Continuam a exibir nervos de aço, ainda que a segunda ronda de agulhas seja mais dolorosa. Disfarçam a dor como critério de dissuasão. Esperam que a exasperação dos beligerantes os faça perder a paciência. Eles é que não têm nervos de aço. Pode ser que desistam das intenções agressivas ao verem a impassibilidade dos alvejados. As vítimas, que não acusam a dor de quem foi atingido pelas agulhas, domam a dor para convencerem os agressores da inutilidade da agressão. Se mantiverem os nervos de aço, os agressores vão perder a paciência. O efeito pode ser o contrário do pretendido se os agressores recorrerem a artilharia mais pesada. Os que têm nervos de aço não desmobilizam. Essa é a única diplomacia à sua disposição, a sua única esperança na extinção da agressão. O perdão da agressão nem se coloca a quem fingiu que a agressão não aconteceu. Fossem de matéria frágil os seus nervos, e por esta altura os alvejados já estavam nas mãos dos mastins. Com os nervos de aço, querem vencer os mais fortes pelo cansaço.

18.6.25

Quando o turismo é tanto que adultera o turismo

Deftones, “Sextape”, in https://www.youtube.com/watch?v=f0pdwd0miqs

Voltar à definição original de turismo talvez ajude a perceber como o turismo está adulterado. Quem faz turismo, sobretudo no estrangeiro, quer conhecer uma cultura, um idioma, uma gastronomia, pessoas, paisagens, locais e monumentos e uma arquitetura diferentes. Fazer turismo é fazer com que o turista se embeba na cultura do lugar visitado. 

Hoje, o turismo massificado está a adulterar o significado original de turismo. Dirão os indulgentes: o turismo não está adulterado, atualizou-se aos novos tempos que democratizaram o ato de fazer turismo. Pode-se invocar a massificação do turismo, com um certo pendor pejorativo a tiracolo. Ou atualizar o diagnóstico, extraindo a carga normativa e utilizando a expressão “democratização do turismo”. Voos baratos, com o aumento da concorrência no sector, facilitaram as deslocações. Muitas vezes, é mais barato voar do que fazer o mesmo trajeto de comboio. O(a) leitor(a) nem imagina como esta constatação tem elevados danos ambientais e aflige os ambientalistas (e com razão).

Atrás das facilidades de deslocação vem a acessibilidade no alojamento. Não são apenas os tradicionais hotéis que alojam os turistas. Novas categorias de alojamento – hostels, alojamentos locais, airbnb, etc. – acrescentaram oferta e baixaram os preços das estadias. No caso de países que têm um custo de vida abaixo da média europeia, é outro atrativo que funciona a favor da popularização do turismo, tornando-o um sector próspero e com grande peso na economia nacional.

Cidades que entram nos roteiros turísticos atraem cada vez mais turistas. Não está em causa qualquer hostilidade contra os estrangeiros que nos visitam. A convivência cosmopolita com os outros é dos maiores benefícios do turismo. Com outra vantagem aplicada aos tempos medonhos que vivemos: a convivência com o outro educa-nos para sermos cosmopolitas, aprendendo com os outros e estando disponíveis para partilhar aspetos da nossa cultura com eles. Oxalá que este efeito pedagógico do turismo sirva para amortecer um ensimesmar nacional que tem motivações exógenas (os imigrantes vistos como inimigo e o medo fátuo de eles adulterarem quem somos), mas que pode atear um rastilho de intolerância que se pode estender aos turistas.

Os problemas da massificação do turismo estão fora dos fatores mencionados. Muito embora se mantenham os ex-libris nos lugares visitados e haja fatores rígidos da cultura que não se alteram, observa-se uma “customização” dos lugares turísticos à imagem da mole heterogénea que são os turistas. A metáfora dos bares ingleses foi peregrina neste efeito: a primeira coisa que muitos turistas britânicos fazem, assim que desembarcam no destino turístico, é procurar os bares ingleses. Esta “customização” é significativa: a indústria do turismo molda-se às preferências dos turistas. Perde alguns elementos idiossincráticos que constituem o magma da cultura nacional. A indústria quer que os turistas estrangeiros se sintam em casa quando estão no estrangeiro. As pessoas fazem turismo mas precisam de se sentir um pouco em casa quando estão longe dela. Ora, isto é a definição de adulteração do turismo. Porque o turismo se deslaça da sua componente cultural.

Outro problema da “customização” do turismo é a homogeneização da indústria e de comportamentos. Tirando o caso de restaurantes que continuam a divulgar a gastronomia autóctone e os monumentos que são imunes à vaga de massificação turística, os lugares a visitar, seja na restauração ou nos lugares que aparecem nos roteiros, são cada vez mais iguais, seja no Porto ou em Helsínquia. O turismo está a perder a originalidade. Está virado para os visitantes, em vez de os visitantes terem abertura mental para descobrir pessoas, lugares, culturas, comidas novos.

É o turismo – a sede de tanto e estandardizado turismo – que está a matar o turismo. 

17.6.25

Até para fingir é preciso fingir

Soundgarden, “Limo Wreck” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=vrnxtk-zP0k

Na alta roda dos figurões e dos seus satélites, os aspirantes que, todavia, não passam de figurantes, vive-se numa imersão de fingimentos. As bocas críticas – os visados diriam: as bocas maledicentes – terçam enredos conspirativos que deixam os mandantes emaranhados numa teia de confirmações. Invertido o ónus da prova, são condenados pela suspeição até prova em contrário. Casos há em que a má formação que serve de aval às críticas contundentes tem o lastro prévio de condenações em tribunal. Todavia, haveria de nascer o dia da sua homenagem.

Na alta roda montada a preceito, vozes que foram outrora ouvidas em acerbadas críticas ao homenageado sobem a palco e escrevem os capítulos de uma hagiografia. Desce a cortina sobre o passado, esquecem-se as palavras críticas, cauterizadas por cicatrizes a preceito, e eleva-se o homenageado à condição beata.

Até para fingir é preciso saber fingir. Num palimpsesto de fingimentos, um em cima do outro e o último só à espera da melhor circunstância para ser desmentido no opúsculo de um fingimento neófito. Ou a memória tem curto pavio, ou a cerviz das pessoas dobra com flexibilidade réptil. E as pessoas, as mesmas que do homenageado diziam o que Maomé não diz do toucinho, comparecem em peso à cerimónia e com genuflexões alimentam a entronização da personagem soez e canhestra que deles próprios terá, em determinada ocasião, emitido juízos em desabono.

Este é um intempestivo exercício de lavagem coletiva da memória. Como se um milagre súbito tivesse concorrido para a revisão da memória dada e as pessoas rendessem homenagem encomiástica a quem foram seus diletos críticos. O fingimento que medra dentro de um fingimento deixa tudo imerso numa confusa nebulosa, não se desse o caso de o fingimento ser o manual de instruções com mais saída no mercado. Ou então, um fingimento por dentro de um fingimento deixa de ser fingimento.

A hagiografia esgotou-se no dia do cerimonial. No dia seguinte, vingando a desmemória seletiva, já ninguém evoca a hagiografia. Provavelmente, nem o hagiografado, diligente praticante da hipocrisia vertida na sequência interminável de fingimentos que se acumulam num fingimento de proporções bíblicas. O homem situado ao nível dos anjos pactuou com a encenação, num delírio coletivo que só encontra explicação pela atração vertiginosa das pessoas pela continuidade dos fingimentos. 

O dia seguinte foi um dia normal. As bocas voltaram às falas verrinosas. O homenageado não é um santo e a hagiografia da véspera foi apressada e sem significado. Ficou confirmado o estado da humanidade, sentada num imenso palco que aloja múltiplos fingimentos. Talvez estas vidas sejam uma metáfora do complexo teatro em curso. E valha a pena mudar o significado de hipocrisia.

16.6.25

A valsa dos rebeldes

Cocteau Twins, “Ivo”, in https://www.youtube.com/watch?v=VwlPy2ap08o

(Monólogo, desde o miradouro que alcança a cidade, que dorme ainda embrulhada no seu torpor)

Não me ensinem o sortilégio da ética. Olhamos à volta e o que vemos? Gente de mais a desaplicar o que se ensina nos fóruns informais, à conta das famílias que acolhem os alicerces do comportamento, à conta dos manuais que ensinam procedimentos condenados a serem acasos. Divergem da aprendizagem para não ficarem para trás daqueles que, tendo sido desertores antes deles, tiveram direito a um quinhão do espólio destinado aos párias.

Não queiram que seja um romântico dissidente fiel aos mandamentos, se ficar a léguas dos outros que andaram para trás com as tábuas que regem os comportamentos. Os que roubam, os que mentem, os que se aproveitam de portas abertas por acaso e não as fecham para conterem danos por todos sentidos, os que são desleais, os que não respeitam a palavra dada sem se apalavrarem com o desrespeito de si mesmos, os que dissimulam ser quem não são e deixam os outros abraçados a um logro de que não têm culpa, os assassinos de carácter, os cultores da maldade gratuita, os que aceitam a corrupção contra a troca de vantagens materiais (mostrando quão banais são estas vantagens, ou módico o seu compasso moral), os que trocam o ardil pela autoria, os que enriquecem sem causa visível, os que se enfeitam com desonestidade intelectual, os que, militantes da audaciosa despadronização, são figurantes num fingimento geral.

Não me digam que não devo capitular contra as marés-vivas de exemplos que deviam ser a sua antítese. Não me segredem belos propósitos que poucos acatam. Não me convençam que errado é o meu diagnóstico e que, por erro de apreciação, estou a um passo de cair no abismo onde se traduz a decadência incorrigível dos tempos madraços em que estamos empenhados. Não insistam em ser a minha bússola à prova de erro.

Não me comprem o silêncio. Não me untem com moral atávica se quase todos os demais passaram por um banho de esterilização e foram fautores das regras fátuas. Não me arranjem um noivado com o impecável respeito das leis. Não me leiam os dicionários dos tempos havidos nem me forneçam mapas a favor do devir exemplar. Não me aconselhem os conselhos que não pedi. Não me queiram salvar, que ainda estou longe de ser um caso perdido.  

13.6.25

Deem-me música (sem ser com a conotação pejorativa dos cânones instituídos)

Tindersticks, “Always a Stranger”, in https://www.youtube.com/watch?v=k5Cn17azjaA

Os nimbos acumulam-se e o céu desce depressa, pesando sobre as costas. O ar, irrespirável, entranha-se como doenças insuspeitas de recomendação. As vacinas ainda não foram inventadas para travar o contágio dos que começaram a perder as rédeas da lucidez. Não tarda nada, os nós de uma tempestade medonha vão-se desatar e uma leva de coisas execráveis insinuar-se-á nos poros, no sangue, no ar que expelimos depois de o inspirarmos cada vez mais poluído. O palco decadente deixou de ser um lugar seguro para estar. 

A latrina tornou-se no areópago onde os contrários se agridem com deleite. As coisas sofismadas montam-se no pedestal onde gravitam verdades irrefutáveis, certezas à prova de contestação e a castração intelectual dos que desalinharem. Das barricadas opostas emergem vultos seráficos preparados para o sacrifício. Estão prontos a oferecer a sua vida em nome de causas e de quem as agita, como um batalhão atirado para a frente de batalha e eles como vítimas sacrificiais a quem é prometida a redenção póstuma. As vidas assim terçadas são insignificantes, inconsequentes, reduzidas a zero. A alucinação adestrada torna as vidas irrisórias, com o consentimento dos próprios. 

A deriva para a alucinação que se contamina com o passar dos dias faz com que este lugar não seja recomendável. A válvula de escape é o exílio voluntário, um exílio interior que legitima a arte do fingimento. Fingir deixa de ser pejorativo. O fingimento é o lugar bucólico que admite a suspensão do tempo e da circunstância que afeiam este lugar. 

O fingimento tem muitas materializações. A música é uma delas. Torna-se a caução lisérgica dos que se refugiam, decretando a sua condição pária por oposição à decadência maçadora do lugar. Haja quem dê música constante para o pensamento se devolver a uma pureza impossível no atual estado de coisas. A música como lugar de hibernação que cura as feridas abertas pela exposição demorada à realidade limítrofe. 

Deem-me música, para fugir deste lugar e desta gesta irremediável.

12.6.25

Sabor a azedo

Lamb, “Gorecki”, in https://www.youtube.com/watch?v=tSRYvYN1ayw

O fado que nos subjuga é feito de uma História longa, repleta de proezas e de contrariedades, embebida numa memória sujeita a reinterpretações. Uma História instrumentalizada com propósitos opostos (a ideia da imorredoira nação ínclita que se opõe à reivindicação da colonização como um cortejo de erros à espera de emenda), uma História que embacia olhares aprisionados atrás da estatura que foi arrematada com a trajetória do tempo.

Confunde-se portugalidade como pertença com um sentido histórico de grandeza que deixou de medrar. Piora o diagnóstico quando há quem traga à colação a desinspirada herança da “raça”, porque os tempos avançam e com eles o que as pessoas (a maioria delas) pressentem sobre o termo e a sua relevância. A portugalidade que continua a ser solenemente celebrada a cada dez de junho não é um atavismo, se dois dias depois da sua encomiástica celebração se assinala o 40.º aniversário da assinatura do Tratado de Adesão às (então) Comunidades Europeias? O contraste não pode ser mais vívido pela contiguidade de datas: a portugalidade continua a ser o mote para amores, indiferenças e desamores e a Europa continua a ser uma nota de rodapé quando devia ser celebrada como a redenção de que estávamos a precisar depois da redução à exiguidade geográfica que herdámos com a deposição da ditadura.

A insistência no cortejo laudatório da portugalidade não se devia desprender das circunstâncias do momento. Há quase um mês, a extrema-direita festejou um resultado nas eleições que ninguém conseguiria profetizar há seis anos. Até então, éramos parte da excecionalidade europeia: a extrema-direita era insignificante. Agora deixámos de pertencer a essa excecionalidade com a cavalgada eleitoral que a extrema-direita tem protagonizado. Entre 2019 e 2025, o número de votos do Chega cresceu vinte e uma vezes.

Esta crescente visibilidade tem efeitos no dia-a-dia, nas relações comezinhas entre os pares. O que dantes era reprimido porque a extrema-direita não estava na moda é agora verbalizado em público sem que os seus fautores tenham receio de ser abjurados: vulgarizam-se comportamentos soezmente racistas e o bolçar xenófobo que antagoniza um “nós” contra “os outros”. No dia da portugalidade, estes comportamentos atrozes vieram para as notícias: ex-combatentes mandaram o imã de Lisboa para a “sua terra” durante uma cerimónia em que esteve presente o muito presumível futuro presidente da república (sem que este tivesse tido o incómodo de dar uma pública reprimenda, que, agora sim, seria acertada); um ator da companhia de teatro “A Barraca” foi agredido por uma chusma de neonazis antes de subir a palco; e alguns comentadores desencantados com o discurso da comissária oficial do dez de junho, Lídia Jorge, protestaram uma suposta “traição à pátria” da escritora porque ela teve a lucidez e o desassombro de tocar em feridas que, para estes críticos, continuam escondidas atrás de convenientes tabus. 

Admito que os assertivos percursos mentais destes radicais libertaram-se da hibernação forçada porque o contexto lhes é favorável. Estão de peito cheio, agora que se sentem representados por uma bancada parlamentar de gente que pensa e fala como eles dantes não tinham coragem de pensar e falar. Neste contexto altamente contaminado, celebrar o dez junho e o orgulho da portugalidade é convocar os radicais para saírem das suas remotas coutadas e virem para a rua tresler os festejos. É dar-lhes uma oportunidade para gritarem as suas agendas radicais e atávicas, com o uso da violência como argumento derradeiro no caso dos mais radicais entre os radicais. Sem perceberem que, pese embora 26% dos deputados estarem do seu lado, os restantes 74% reprovam as suas ideias e os seus métodos. O dez de junho de 2025 levará esta nódoa à lapela para memória futura.

Quando vejo estes retrógrados treslerem as celebrações para as empurrarem para algo que só existe no seu pobre e desatualizado imaginário, sinto uma incómoda pulsão para usar os métodos de que são useiros e vezeiros. Bem sei que o recurso à força quase sempre determina que a razão se dissolva entre os dedos. No caso vertente, como as sinapses estão deslaçadas e o raciocínio se move por corredores vãos, fica inviabilizada a hipótese de os radicais responderem a algumas questões que reputaria do foro existencial. 

Eis alguns exemplos: como têm o topete de mandar os outros para a terra deles se alguns dos seus antepassados estiveram emigrados em terras estrangeiras e prosperaram na condição que agora querem negar a outros “outros” que nos procuram? Como podem destilar esta irada devolução à origem se os nossos mais longínquos antepassados, quando chegaram a terras estranhas e desataram a colonizá-las, eram o outro forasteiro e mesmo assim se impuseram pela força? E já que se fala de força bruta, uma pergunta encomendada aos neonazis: um dos seus, Mário Machado, teve tratamento a preceito ao dar entrada no estabelecimento prisional que o esperava, sendo agredido por alguns dos seus pares; é desta força bruta que estão à espera de serem as próximas vítimas, para, talvez, então aprenderem que a violência perante os outros não pode ser curricular? 

Timidamente, no seu discurso do dez de junho o presidente da república procurou desfazer lugares-comuns quanto à pertença associada à portugalidade. Porque no final do primeiro quartel do século XXI impõe-se falar de uma portugalidade reinventada, uma portugalidade cosmopolita, ao sabor dos tempos atuais. Era bom que os radicais se desprendessem das suas fronteiras mentais e não forçassem uma grelha de análise que não quadra com o mundo atual. Para que a celebração da portugalidade não tenha um sabor azedo, como aconteceu neste dez de junho.

11.6.25

Tendência e tangerinas (short stories #489)

Alice in Chains, “No Excuses”, in https://www.youtube.com/watch?v=r80HF68KM8g

          Um olhar meticuloso não cobrava avença. Era uma atalaia social, o dever de sindicância à prova de bala. Os cultores avalizados convenciam a multidão: se não estiverem vigilantes, há desvios que conspiram contra a justiça nas relações recíprocas, estilhaçando o cimento do grupo. Não segredavam as consequências dissimuladas. Era pedido para que fôssemos síndicos uns dos outros, com o sainete dos pensadores do regime e a bênção das instituições consentidas, em sinal de agradecimento. Que não fosse questionada a bondade do sistema de vigilância mútua de que todos eram autores e alvos ao mesmo tempo. As pessoas estavam confortáveis no papel de autores da atalaia coletiva. Fingiam não serem os alvos móveis desse olhar coletivo e também ele em permanente movimento. Pediam escusa do pensamento que pudesse indagar a atalaia por conta das instituições. Não queriam admitir que pudessem estar na posição passiva da vigilância; cada um interiorizava a condição pura que os isentava das penalidades da vigilância quando fossem dissidentes dos cânones avalizados. Era um tremendo embuste: se ninguém saísse da linha, a atalaia de todos por todos perdia razão de ser. O que era significativo dos tempos averbados. Da distância entre o apregoado e o que se praticava. Ninguém confessava os seus pequenos ou grandes desvios a menos que fosse apanhado na rede apertada da atalaia sistemática. Só havia mentira quando um delator viesse a público documentá-la. Até lá, era como um submarino escondido da superfície: o consenso tácito da mentira disfarçada. Os autores da atalaia passavam quase todo o tempo sitiados pelo fingimento. Quando uma farsa era descoberta e o farsante denunciado, aplaudia-se a atalaia tendenciosa. Todos se agarravam às tangerinas oferecidas como se elas não estivessem à espera de madurez. A vigilância compensava, contra os melhores disgnósticos que a encostavam a tempos de má memória.

10.6.25

A mão desarmada

PJ Harvey, “C’mon Billy”, in https://www.youtube.com/watch?v=pr1j3GfJuR4

Verte-se a vergonha por cima do fingimento que destoa em forma de orgulho. Não se diga “às armas”, a beligerância é o totem da impudicícia que nos consome em lume abundante. Que seja ditado o pesar sobre hinos ainda beligerantes. Diga-se antes “à mão desarmada”, a mão de que foram extintas as armas. Pois não precisamos de ser os verdugos que derramam o sangue e povoam cemitérios onde jazem com seus nomes as vítimas que não chegaram a ter nomes quando foram ter às mãos dos verdugos. 

A mão desarmada é a mão bondosa. Aquela que se estende para ser parte de outra pessoa. A mão que lança mão da cooperação, sepultando a beligerância suicidária. Para ser a mão onde se abrigam os que precisam de indulgência, ou apenas os que aproveitam o gesto singular de quem se oferece sem querer açambarcar uma recompensa como proveito. 

Diz-se a “mão desarmada” porque os tempos arquivados na memória não deixam que se use a mão sem arma. A mão que nunca deitou a mão numa arma, a que nunca foi agressora no cotejo com os outros. Se houvesse ideais, não haver armas seria um dos epílogos. Estamos dependentes de armas, porque não se consegue extinguir a festa adversa que enxameia a História com episódios de vergonha. Mas há mãos que nunca foram de armas. Serão mãos essas a tutela de um despadrão. 

Em palcos de podridão, os tempos desdobram-se em atos que servem de exemplo; evocar as memórias madrastas é o primeiro passo para a lucidez. A História serve de lente para o futuro, se a lucidez não estiver aprisionada por vultos que se insurgem contra a bondade das pessoas. 

À falta de mão sem arma – e na impossibilidade de cumprir o sonho da extinção das armas –, sobra a possibilidade da mão desarmada. A mão que se arrepende de ter tido uma arma como pele. A mão que não devolve as vidas abjuradas, ou o sangue que veio lavar campos que se tornar hediondos palcos de violência gratuita. A mão, esta mão, devia ser dada a outras indeléveis mãos consagradas no sonho da desviolência. Até que todas se tornassem arquitetas e engenheiras do que não importasse dor na carne alheia. Nem que este fosse um assalto à mão desarmada.

9.6.25

Arroto a alho

Radiohead, “Let Down” (live at Lollapalooza Chicago), in https://www.youtube.com/watch?v=n9Xgj8RRgmE

Não sei se será lenda: corria à boca pequena que os jogadores italianos mastigavam alho antes de entraram em campo quando jogavam contra ingleses. Nos pontapés de canto, quando os atletas se aglomeram na grande área e a proximidade humana ganha escala, os italianos expeliam o bafo na direção dos ingleses e estes, agoniados, desconcentravam-se. Para dar corpo à lenda (ou para a confirmar, termos em que deixaria de ser uma lenda), falta um investigador meticuloso extrair e tratar dados estatísticos para se apurar quanto golos as equipas inglesas conseguiram marcar a equipas italianas após pontapés de canto.

Passemos à metáfora: confrontados com a opinião desconcertante, com teorias esdrúxulas que só lembram ao demo (para imensa melancolia destilada pelo demo), olhamos perplexos para os visionários que arrotam coisas. Ficamos sem saber se tamanha precognição pode ser considerada como tal, ou se o visionário é um provocador nato que apenas quer granjear a atenção da audiência. 

Dando cumprimento à última hipótese, há de tudo. Esoterismos avulsos, maquinações improváveis, alucinantes teorias da conspiração, mentiras tão sucessivas que há toda uma audiência a trocar as voltas ao que é mentira e é verdade, caminhos sinuosos que levam a conclusão inatendíveis, raciocínios ininteligíveis que ofendem a ontologia do raciocínio, negacionistas da ciência que entregam o ónus da prova a quem lhes negar provimento (numa absurda inversão do ónus da prova que os ditos insistem ser legítima). 

E por aí fora. São os abjetos re-fundadores dos desvarios. Aqueles que acreditam nas teorias que inventaram e se esqueceram de oferecer os fundamentos. São os lídimos arrotadores de alho (sem desprimor para o alho, um ingrediente vital na gastronomia). Voltemos à metáfora: o bafo que estes vendedores de banha da cobra exalam é semelhante ao castiço que trinca dentes de alho por autorrecreação porque leu numa campanha de publicidade que o alho prolonga a vida de quem o trincar com assiduidade. E depois, quando se achega aos outros, ao pespegar um beijo nos entes queridos ou em senhoras das suas relações, ou ao pedir um rissol e uma cerveja ao balcão da pastelaria, causa um esgar de agonia próprio de quem está confrontado com um odor nauseabundo. 

Tão nauseabundo como o que dizem e escrevem no resguardo de uma contramaré que tresanda a um odor ainda pior: o odor da artificialidade. 

6.6.25

Não há cláusulas de rescisão para os professores universitários

Pulp, “Spike Island” (live at Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=3BygudvVijU

O futebol é pródigo em negócios milionários: as equipas protegem-se financeiramente contra a contratação das suas “joias da coroa”, adicionando cláusulas de rescisão aos contratos dos atletas. Para completar a blindagem, os contratos são de longa duração. Uma equipa milionária que queira contratar um atleta promissor tem de abrir os cordões à bolsa, pagando a cláusula de rescisão, ou chegando a acordo por um valor inferior após duras negociações. É uma forma de democratizar as finanças dos clubes que participam nas competições nacionais e internacionais. E um meio de mitigar o desequilíbrio desportivo entre os mais fortes e os menos fortes, impedindo a sangria de atletas prodigiosos dos segundos para os primeiros. Foi, ao mesmo tempo, um método para tornar o negócio do futebol milionário.

No sector do ensino universitário nada disto existe. O panorama contratual não obedece à mesma escala de mobilidade. Os professores universitários não estão blindados por cláusulas de rescisão. As instituições de ensino sabem que a mobilidade de docentes entre universidades é insignificante e obedece a outra lógica contratual, que ora passa por concursos públicos competitivos, ora passa pela contratação direta no caso de professores convidados ou do corpo docente de universidades privadas. As instituições de ensino também sabem que a procura e a oferta é rígida: o número de praticantes de futebol é muito maior do que o número de professores universitários, pese embora serem uma elite os que, entre os primeiros, têm contratos protegidos por cláusulas de rescisão.

As diferenças são significativas, apesar de os contextos diferentes entre o futebol e o ensino universitário explicarem essas diferenças. Todavia, não é mal lembrado cotejar os dois intervenientes destes mercados: um atleta que se distingue a pontapear a bola é principescamente remunerado, enquanto um professor universitário é mal pago. Se se aceitar que os mercados têm características e dinâmicas que obedecem às preferências das respetivas procuras, as diferenças abismais ficam explicadas à partida. É lugar-comum que o futebol move multidões, os afetos e paixões são irracionais e a sedução das multidões traz consigo a atração de múltiplos patrocinadores que enchem os cofres dos clubes com montantes milionários. O ensino universitário está a léguas deste contexto. Vive de orçamentos apertados. As universidades públicas dependem do erário também público, que não tem sido generoso nas transferências para as instituições de ensino. As universidades privadas vivem das propinas cobradas aos estudantes. Umas e outras podem ainda depender de mecenas, mas essas é uma receita não assídua e que depende do acaso. 

Qualquer cidadão, até o menos informado sobre o futebol, sabe os nomes dos principais atletas. A visibilidade pública dos professores universitários está muito aquém. Os seus nomes são conhecidos apenas no meio, entre os pares e os estudantes (quando estes sabem os nomes dos professores e não os tratam como “o professor de Introdução à Economia”). Tirando algumas honrosas exceções, seja porque a sua intervenção científica teve efeitos sociais, seja por causa do assíduo comentário nas televisões, os professores universitários são tão anónimos como qualquer outra pessoa. Se o mundo é comandado pela lógica dos números e pelas verbas que mobiliza, eis porque os professores universitários têm modestos estipêndios e os seus contratos não contêm cláusulas de rescisão.

As universidades estão numa posição contratual de privilégio, pois a oferta (de candidatos a professores) é muito superior à procura (de cargos para professores do quadro), sobretudo a partir do momento em que os doutoramentos se banalizaram. No futebol, a dinâmica é inversa: os atletas que se distinguem estão numa posição contratual privilegiada, o que explica a necessidade de os clubes que os contrataram blindarem os contratos com milionárias e dissuasoras cláusulas de rescisão.  

Está em falta apurar, com critérios rigorosos e objetivos, a comparação do valor social de um atleta que ganha a vida a pontapear a bola (e, não poucas vezes, os adversários e a gramática) e um professor que contribui para a formação da sociedade. Talvez a comparação destes dois mercados seja o exemplo acabado de uma falha do mercado, ou de uma distorção motivada pelo enviesar das perceções dos intervenientes nestes mercados. Se a assimetria não fosse tão pronunciada, e o valor social dos professores universitários fosse reconhecido, eles seriam remunerados em função do seu (então reconhecido) valor social. E, eventualmente, os seus contratos passariam a contemplar cláusulas de rescisão, tornando o mercado de trabalho mais flexível e dinâmico, com mais entradas e saídas no corpo docente das universidades. É que – mal não pareça a comparação – o burro anda melhor se for atrás da cenoura.

5.6.25

Pelos vistos, morfina


Girls 96, “Estrela Superstar”, in https://www.youtube.com/watch?v=FxHnhSAasF4

A voz da casta ressoa nos socalcos em que se desdobra o tempo. Altiva e perene. Agressora. Terrivelmente intrusa. Dela ecoam palavras gratuitas, um penso rápido administrado sobre as feridas do mundo que ficam ainda mais à mostra. No cadafalso da aparente erudição, vegetam mandatários que soluçam verdades sem contraditório. Aos demais, sobra o dever inalienável de concordar. Mal de quem ousar a dissidência. O preço a pagar é exorbitante: está destinado o desterro para um lugar longínquo que, no entanto, está dentro do lugar a que pertencem. São as vítimas prediletas deste palimpsesto de lugares.

As danças acertadas que disputam o óbice da perfeição entram nos manuais de instruções. Os comportamentos vestem-se de acordo com o código de conduta. Venceu a padronização. Não se priva a liberdade de quem desalinhar. Não lhe chamam ousadia, mas em silêncio é o libelo que adeja sobre a impertinência dos desalinhados. Eles não se devem afastar da lucidez para terem consciência dos efeitos. Têm de estar preparados para ser os novos párias, por decreto dos mandatários dos usos e costumes consagrados. Deste decreto não há apelação.

Porventura não chega a ser um custo para os que forem condenados ao desterro. Pesadas as circunstâncias, o melhor critério é o que acende uma centelha sobre o ar irrespirável que se abateu sobre um ecossistema venal. As pessoas não fazem perguntas – perguntar é um incómodo que não compensa o trabalho e, assim como assim, há sempre alguém que tem a meândrica incumbência de pensar por nós, de pensar na nossa vez. A apatia é o bestiário a que estão destinados os que endossam o pensamento. Depois, não vão a tempo de resgatar a vontade empenhada. Essa é a pior tirania a que nos podemos submeter. A culpa será de quem não se amofina com a desarte a que chegámos.

Como os livros não se plantam em terra fertilizada, o pensamento não emigra de umas cabeças súbditas para as cabeças que se promovem como suseranas. Podemos tomar morfina e já nada nos importuna. Deixamos as dores a rimar com a nossa decadência. A decadência fica à mostra pelo apequenar a que nos entregamos. Somos reféns de uma vontade anestesiada, à mercê das vontades congeminadas nos restritos estiradores dos mandatários vigentes. Sobre esta tirania, poucas são as palavras.

4.6.25

Metamorfose, ou o punhal descravado

Nils Frahm, “Monuments Again”, in https://www.youtube.com/watch?v=FL0ULiXO5I0  

Um corpo estranho, uma almofada estratificada com espinhos aguçados que ferem a carne, como se à volta fosse falido o idioma e falado um idioma ininteligível e a fala ficasse comprometida, condenando à solidão quem não chega à fala com os outros. Um diadema esmaecido que apequena a estatura outrora resplandecente. As portas puídas que deixam entrar o frio e o ruido e as provas de um mundo contrafeito. O mar baço que sobe pelos poros das rochas derruídas por marés imparáveis. Uma espada enferrujada que perdeu a serventia – e o paradoxo de a ter como elixir da não-beligerância, a receita que valida o sono amainado. 

Um olhar comprometido pelos olhares precedentes, numa paleta de cores adulterada pelo toque de quem não é sindicável. A corrupção dos sentidos que se afivela nos sucessivos fingimentos empossados como código de conduta. Um piano que discorre vagarosamente, o som empunhado nas teclas percutindo contra a serenidade alojada no peito. Uma tocha em decadência, a claridade a fugir entre os dedos da noite e a promessa de crepúsculo a selar a solidão inadiável.

Uma palavra escrutinada pelos interiores escaninhos onde se apura a sua diligência. A recomendação do silêncio, se um acaso se congeminar para os outros requisitarem um conselho. A negação de tudo o que seja memorável: o sortilégio dos possíveis caminhos paralelos em que se tecem tempo e memória exige a dúvida metódica, o diapasão de interrogações que não pressentem resposta; e as objeções sistemáticas que recusam a letargia imposta pela acomodação ao mais fácil. Os poemas vagos que voam entre as páginas dedilhadas pelos minutos sem paradeiro, poemas servidos em preparos solenes que se dispõem contra a madurez do tempo.

Ou a metamorfose, o cantil por onde se bebem os fragmentos que a convocam. A metamorfose irrecusável que assenta as fundações da redenção, quando a redenção não é forjada nos artificiais corredores do pensamento corrompido. É preciso arrancar o punhal que se cravou fundo, ainda que se corra o risco de ensanguentar a carne à volta para enfraquecer os títeres que se locupletaram com a gramática da vontade alheia. 

Ou a metamorfose como método, incansável objeto da insatisfação, a versão sem déspotas que criminaliza a rotina que se insinua como critério para a extinção da vontade.

3.6.25

O largo dos jacarandás

Sigur Rós, “Andavari” (live in Reykjavik), in https://www.youtube.com/watch?v=4FDULxUeMpQ

De cada vez que treme a fala, é porque os jacarandás floridos extasiam o olhar e ele cede, num frémito, ao povoar da alma com bandeiras que não envergonham a humanidade. As veias estilhaçam as sucessivas camadas de maldade destiladas por gerações que amaldiçoam os dias herdeiros. Se houvesse milhões de sílabas em saldo, escolhiam-se apenas as que integram estrofes que são o desembaraço dos tempos malditos. 

Os jacarandás, dizem os compêndios, não exalam perfume. Não é preciso: o arrebatamento que o olhar sente, ao ser desafiado pela cor exótica dos jacarandás desabrochados, é um perfume frugal mas que corta a carne ao fundo. Só o conseguem as almas que desacertam a atenção ao demais para se abraçarem num regime de efémera exclusividade à parada de jacarandás que aformoseia o largo. 

Esta é uma embriaguez que não seria apanhada nos detetores de álcool. No contemplação das árvores que estendem um manto copioso de pequenas pétalas arroxeadas, o tempo deixa de se entretecer, suspende-se na litania dos sentidos que se ateia numa ebulição singular. O corpo sente-se remoto e agradece a dádiva dos jacarandás na sua sazonal demanda que cobre de pétalas o largo despido de beleza no tempo que sobra. Agradece o sopitamento, sentindo-o como uma dádiva inata aos lugares extemporâneos que são refúgio do mundo desapetecido. 

Até o ruído dos veículos que enxameiam o largo fica em hibernação: a coreografia de sentidos que responde ao desafio dos jacarandás floridos faz o obséquio de fingir uma surdez terapêutica. Sem a surdez fingida, a contemplação das árvores nem à metade podia ambicionar. Durante a hibernação higiénica, o sangue abranda e as veias rejubilam com os anos de vida que recebem em crédito.

Por isso é que o vívido florir dos jacarandás é efémero e volta a ser efémero quando depois se renova.

2.6.25

Comparência forçada e mesmo assim perder

Simple Minds, “Alive and Kicking”, in https://www.youtube.com/watch?v=ljIQo1OHkTI

As paredes finas deixavam entrar o som. Como fossem vidros de cristal e as vozes não precisassem de ser estridentes para serem ouvidas. A conversa tinha cúmplices involuntários. Por mais que fossem feitos apelos à distração, as malditas paredes finas que não travavam a entradas das vozes contérminas davam alento a uma atalaia indesejada.

A desconcentração, tão amiúde noutros preparos, e que tanto forçava um esgar de auto-descontentamento por se sobrepor aos escaninhos da lucidez, era um trunfo a favor da cumplicidade da conversa limítrofe. Eram vozes de género diferente. Mas as vozes comungavam da desrazão, com um amontoado de recriminações deitando-se ferozmente ao passado que se prestava à censura. No quarto do lado, os fragmentos da vida de duas pessoas desconhecidas; se no dia seguinte, ao saldar as contas do hotel, aquelas pessoas coincidissem na receção, não saberiam que as suas vidas entraram como intrusas na insónia que, em reflexo condicionado, se instalou no quarto vizinho.

Vítima de um voyeurismo virado do avesso. Tem crescido com a democratização das pessoas no espaço virtual, dando corpo a um narcisismo mal resolvido que, agora, encontra uma exibição expressiva. Dantes, havia quem gostasse de saber das vidas dos outros. Agora a tarefa deixou de se travar com obstáculos, porque são muitos os que exibem as profundezas das suas vidas. Talvez seja errado ter esta derivação moderna como um voyeurismo virado do avesso; a melhor hipótese é tê-la como reconstituição do voyeurismo pela mão dos artefactos da modernidade.

A caminho de casa, às vezes soavam excertos do falatório tonitruante que trespassou as paredes do quarto. Não conseguia rebater os impulsos da memória, eles teimavam em convocar um ou outro fragmento da discussão. Queria ter sido punido com a falta de comparência numa querela que não era minha, mas não consegui. Para os devido efeitos, preferia ter sido declarado perdedor por falta de comparência. Tudo o que consegui foi que o meu nome fosse alistado nas presenças contra a vontade e, mesmo assim, fui o maior perdedor daquela querela.

O hotel não se livrou de uma crítica contundente. Quiseram poupar na matéria-prima das paredes, mas perderam um cliente que não perdoou a instância vertiginosa de ter sido arrolado, e contra a sua vontade, como testemunha daquela pendência mal resolvida.