Cocteau Twins, “Ivo”, in https://www.youtube.com/watch?v=VwlPy2ap08o
(Monólogo, desde o miradouro que alcança a cidade, que dorme ainda embrulhada no seu torpor)
Não me ensinem o sortilégio da ética. Olhamos à volta e o que vemos? Gente de mais a desaplicar o que se ensina nos fóruns informais, à conta das famílias que acolhem os alicerces do comportamento, à conta dos manuais que ensinam procedimentos condenados a serem acasos. Divergem da aprendizagem para não ficarem para trás daqueles que, tendo sido desertores antes deles, tiveram direito a um quinhão do espólio destinado aos párias.
Não queiram que seja um romântico dissidente fiel aos mandamentos, se ficar a léguas dos outros que andaram para trás com as tábuas que regem os comportamentos. Os que roubam, os que mentem, os que se aproveitam de portas abertas por acaso e não as fecham para conterem danos por todos sentidos, os que são desleais, os que não respeitam a palavra dada sem se apalavrarem com o desrespeito de si mesmos, os que dissimulam ser quem não são e deixam os outros abraçados a um logro de que não têm culpa, os assassinos de carácter, os cultores da maldade gratuita, os que aceitam a corrupção contra a troca de vantagens materiais (mostrando quão banais são estas vantagens, ou módico o seu compasso moral), os que trocam o ardil pela autoria, os que enriquecem sem causa visível, os que se enfeitam com desonestidade intelectual, os que, militantes da audaciosa despadronização, são figurantes num fingimento geral.
Não me digam que não devo capitular contra as marés-vivas de exemplos que deviam ser a sua antítese. Não me segredem belos propósitos que poucos acatam. Não me convençam que errado é o meu diagnóstico e que, por erro de apreciação, estou a um passo de cair no abismo onde se traduz a decadência incorrigível dos tempos madraços em que estamos empenhados. Não insistam em ser a minha bússola à prova de erro.
Não me comprem o silêncio. Não me untem com moral atávica se quase todos os demais passaram por um banho de esterilização e foram fautores das regras fátuas. Não me arranjem um noivado com o impecável respeito das leis. Não me leiam os dicionários dos tempos havidos nem me forneçam mapas a favor do devir exemplar. Não me aconselhem os conselhos que não pedi. Não me queiram salvar, que ainda estou longe de ser um caso perdido.
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