4.6.25

Metamorfose, ou o punhal descravado

Nils Frahm, “Monuments Again”, in https://www.youtube.com/watch?v=FL0ULiXO5I0  

Um corpo estranho, uma almofada estratificada com espinhos aguçados que ferem a carne, como se à volta fosse falido o idioma e falado um idioma ininteligível e a fala ficasse comprometida, condenando à solidão quem não chega à fala com os outros. Um diadema esmaecido que apequena a estatura outrora resplandecente. As portas puídas que deixam entrar o frio e o ruido e as provas de um mundo contrafeito. O mar baço que sobe pelos poros das rochas derruídas por marés imparáveis. Uma espada enferrujada que perdeu a serventia – e o paradoxo de a ter como elixir da não-beligerância, a receita que valida o sono amainado. 

Um olhar comprometido pelos olhares precedentes, numa paleta de cores adulterada pelo toque de quem não é sindicável. A corrupção dos sentidos que se afivela nos sucessivos fingimentos empossados como código de conduta. Um piano que discorre vagarosamente, o som empunhado nas teclas percutindo contra a serenidade alojada no peito. Uma tocha em decadência, a claridade a fugir entre os dedos da noite e a promessa de crepúsculo a selar a solidão inadiável.

Uma palavra escrutinada pelos interiores escaninhos onde se apura a sua diligência. A recomendação do silêncio, se um acaso se congeminar para os outros requisitarem um conselho. A negação de tudo o que seja memorável: o sortilégio dos possíveis caminhos paralelos em que se tecem tempo e memória exige a dúvida metódica, o diapasão de interrogações que não pressentem resposta; e as objeções sistemáticas que recusam a letargia imposta pela acomodação ao mais fácil. Os poemas vagos que voam entre as páginas dedilhadas pelos minutos sem paradeiro, poemas servidos em preparos solenes que se dispõem contra a madurez do tempo.

Ou a metamorfose, o cantil por onde se bebem os fragmentos que a convocam. A metamorfose irrecusável que assenta as fundações da redenção, quando a redenção não é forjada nos artificiais corredores do pensamento corrompido. É preciso arrancar o punhal que se cravou fundo, ainda que se corra o risco de ensanguentar a carne à volta para enfraquecer os títeres que se locupletaram com a gramática da vontade alheia. 

Ou a metamorfose como método, incansável objeto da insatisfação, a versão sem déspotas que criminaliza a rotina que se insinua como critério para a extinção da vontade.

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