Simple Minds, “Alive and Kicking”, in https://www.youtube.com/watch?v=ljIQo1OHkTI
As paredes finas deixavam entrar o som. Como fossem vidros de cristal e as vozes não precisassem de ser estridentes para serem ouvidas. A conversa tinha cúmplices involuntários. Por mais que fossem feitos apelos à distração, as malditas paredes finas que não travavam a entradas das vozes contérminas davam alento a uma atalaia indesejada.
A desconcentração, tão amiúde noutros preparos, e que tanto forçava um esgar de auto-descontentamento por se sobrepor aos escaninhos da lucidez, era um trunfo a favor da cumplicidade da conversa limítrofe. Eram vozes de género diferente. Mas as vozes comungavam da desrazão, com um amontoado de recriminações deitando-se ferozmente ao passado que se prestava à censura. No quarto do lado, os fragmentos da vida de duas pessoas desconhecidas; se no dia seguinte, ao saldar as contas do hotel, aquelas pessoas coincidissem na receção, não saberiam que as suas vidas entraram como intrusas na insónia que, em reflexo condicionado, se instalou no quarto vizinho.
Vítima de um voyeurismo virado do avesso. Tem crescido com a democratização das pessoas no espaço virtual, dando corpo a um narcisismo mal resolvido que, agora, encontra uma exibição expressiva. Dantes, havia quem gostasse de saber das vidas dos outros. Agora a tarefa deixou de se travar com obstáculos, porque são muitos os que exibem as profundezas das suas vidas. Talvez seja errado ter esta derivação moderna como um voyeurismo virado do avesso; a melhor hipótese é tê-la como reconstituição do voyeurismo pela mão dos artefactos da modernidade.
A caminho de casa, às vezes soavam excertos do falatório tonitruante que trespassou as paredes do quarto. Não conseguia rebater os impulsos da memória, eles teimavam em convocar um ou outro fragmento da discussão. Queria ter sido punido com a falta de comparência numa querela que não era minha, mas não consegui. Para os devido efeitos, preferia ter sido declarado perdedor por falta de comparência. Tudo o que consegui foi que o meu nome fosse alistado nas presenças contra a vontade e, mesmo assim, fui o maior perdedor daquela querela.
O hotel não se livrou de uma crítica contundente. Quiseram poupar na matéria-prima das paredes, mas perderam um cliente que não perdoou a instância vertiginosa de ter sido arrolado, e contra a sua vontade, como testemunha daquela pendência mal resolvida.
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