9.6.06

A beleza por dentro de tudo

O cansaço do cepticismo metódico. A urgência em mudar as lentes que filtram a imagem das coisas e das pessoas. Para perceber que as coisas e as pessoas, por dentro, são feitas apenas de beleza. Que tudo merece enaltecimento. Os tons ocres de antanho mergulham a existência numa sofrida, penosa avenida, com espinhos abundantes que ficam cravados nos pés descalços.

A pureza do ar que se respira. A luz límpida na exaltação do sol generoso. Uma luz branca, purificadora. As pessoas anónimas que se cruzam: partir do princípio, ingénuo mas recompensador, que cada anónima alma está preenchida por bondade. Não há maldade a adejá-las. Nem perfídia que ponha as pessoas no encalço da desonestidade, do aproveitamento da ingenuidade alheia, do encavalitamento na boa fé dos outros. Apenas respeito mútuo. As pedras graníticas então desfeitas em cascalho, caminho desbravado para extinguir os tribunais.

As serranias no fulgor da Primavera são o alento primordial. Os montes e vales que se repetem na passagem dos quilómetros, as verdejantes faldas das serras, os promontórios esplêndidos que albergam mistérios bem guardados. Um revigoramento indizível. Apetece sair do carro, adentrar no espesso matagal que empina rumo aos céus. E perder a noção do tempo, entre o perfume das madressilvas viçosas, a sombra refrescante dos choupos majestosos, dessedentar nos fios de água que descem do alto da montanha. Para regressar à origem e poder contemplar o quadro total, os contrafortes da colina que já escondem o sol que se deitou, lá atrás.

Ou estacionar o espírito junto ao mar. Fechar os olhos e sentir a cantoria das ondas que volteiam, nunca repetitivas, enquanto se despedaçam nos rochedos que se entregam à erosão combinada da água salgada e do vento. Sentir as lágrimas das ondas que se desfazem nas rochas, senti-las no refrescante acto que atenua o calor que anuncia o longo estio. Sempre de olhos fechados, na sublime expressão dos sentidos em erupção. Que não se demorem os olhos semi-cerrados na sua escuridão. Na dormente letargia que extasia, perdem a contemplação do gigantesco oceano que se espraia até à fusão com o horizonte. A linha ténue que faz a simbiose dos elementos perde-se no infinito, algures onde outrora a alma ansiava pertencer. Agora, no refulgente renascimento de si, o desejo de estar exactamente onde pertence.

As cores, os sons, as palavras – ditas, escritas, escutadas, murmuradas –, os gestos: um universo de plenitude, nutriente da jactante existência que se contenta com o acto tão simples, e ao mesmo tempo tão difícil, que é viver. Como se a vida fosse uma sinfonia que se compõe dia após dia, mais um punhado de notas compostas a cada dia que se sucede, mais uma estrofe na história da vida que se sedimenta. Um melodioso acto que fica a pairar, indelével. Crescer com as pessoas que dizem muito. Aprender todos os dias, até na surpreendente aprendizagem com desconhecidos que aprecem no caminho. Acordar para o dia sabendo que ele está semeado de surpresas. O desconhecido do dia que está para vir é o lenitivo maior, o desafio que manieta a monotonia.

A beleza das coisas, no seu mistério infinito, desvela o segredo da existência. Um mundo imenso, tantos os recantos por explorar, a luz da noite e do dia que guarda as palavras segredadas, os afagos que fazem renascer, as palavras murmuradas que descerram cortinas do outrora desconhecido. Há na beleza das coisas e das pessoas o oxigénio perene que retempera. Cultivar o tempo passado é uma inutilidade. A única servidão é a experiência cimentada, a lição que impede a repetição dos erros. Olhar para diante, para os dias vindouros. O alfobre dos desafios, dos novos horizontes que se dedilham com o dobrar dos dias, um passadiço para a letargia sepultada, bem fundo.
Por um momento ponho as lentes de parte. E temo que estivesse a ver desfocado através delas.

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