12.6.06

Cimento da portugalidade


Não é da “selecção de todos nós” que venho falar, na exaltação colectiva de um nacionalismo que multiplica os arrepios pelo corpo. Interessa-me perceber se as comemorações do 10 de Junho fazem sentido. Interrogações surgem no horizonte: se estas celebrações da portugalidade deixassem de ter lugar, por acaso ficaríamos menos portugueses? Perder-se-ia o rasto à nacionalidade, os sinais de pertença sublimados num evento que nos relembra o orgulho de sermos descendentes e continuadores da gesta lusitana?

Há algo que me perturba em tudo que resuma a um simples evento o festejo de uma pertença. É assim com a “festa da família” que coincide com o natal, como se nos restantes dias do ano os laços familiares fossem um fio indelével com a espessura das ondas hertzianas (sentem-se, mas não se vêm). É assim com o “dia de Portugal, de Camões e das comunidades”, o protocolo oleado numa sequência de actos, discursos, paradas militares e sabe-se lá mais o quê, para que nós, portugueses cidadãos, puxemos lustro à nacional pertença. Ao menos um dia no ano. Num caso como no outro, apenas o fogo-fátuo de exibições megalómanas.

Que me seja perdoada a forretice: vejo a corte presidencial que se mudou de armas e bagagens para a capital do norte, as paradas da tropa, o séquito que ocupa hotéis de cinco estrelas, mais os banquetes que enchem o bandulho à corte itinerante, e ponho-me a pensar se a factura desta exibição de exaltação de portugalidade não é um desperdício. Poderão dizer que não. Poderão dizer que se trata de trocos, que há facturas bem mais elevadas em coisas mais espúrias que os governantes fazem. Poderão até invocar o simbolismo das celebrações, no arrebatamento do sentir pátrio, para justificar o dinheiro enterrado. Aceito os argumentos, mas não me consigo convencer com eles.

Já para não falar do incómodo que a deslocação da corte trouxe à capital do norte. Carros e motas da polícia com sirenes estridentes, pondo a cidade em estado de sítio. Carrões negros, vidros fumados que obscureciam o interior, escondendo a intimidade dos ilustres ocupantes, em velocidade estonteante pelas ruas da cidade, sem respeito pelos semáforos. As dondocas da corte a entrarem e saírem dos hotéis de cinco estrelas. O trânsito, já difícil em dias normais, mais caótico com o estado de sítio instalado e com as prerrogativas concedidas às excelências que abrilhantaram as celebrações. O ambiente militarista com o arsenal dos três ramos das forças armadas deslocado desde os quartéis até à cidade, sinalizando que a tropa está preparada para nos defender de uma coisa que não passa do imaginário de generais entretidos com anacrónicos cenários de guerra. Quatro mastodontes fardados, exibindo com garbo a pertença a uma “tropa de elite” (comandos ou coisa afim), a saírem de uma pastelaria na Avenida do Brasil, empunhando ameaçadoras metralhadoras, depois de se saciarem com umas imperais (e não é verdade que não se bebe em serviço?).

E depois há a retórica e o simbolismo das cerimónias. Os discursos da prognose da nação. O roteiro necessário para voltar a erguer a bandeira ao alto, para retirar um povo da modorra e da falta de auto-estima que o enluta na falta de empenho tão letal. Palavras de circunstância, uma retórica estafada que nunca traz o segredo tão ansiado. O inevitável elogio do escol que se distingue, os melhores entre os melhores, agraciados com comendas várias. É a pátria que distingue os filhos ilustres. Ao impor a comenda, o mais alto magistrado da nação agradece-lhes, em nome da nação. Por um momento, sonho que um dia serei famoso. Só para algum dia, num 10 de Junho de um ano qualquer, merecer a honra de ser agraciado por um presidente da república que estiver na calha. Só para ser agraciado. E só para ter a honra de recusar a comenda.

Percebo que no domínio das pertenças, onde os sinais de identificação valem tanto, os símbolos reinem. No reino da simbologia, as encenações são elevadas ao altar do sagrado. Olho para os 10 de Junho, todos os anos, e não consigo discernir diferenças no registo. Mesmo quando se voltou a página e as esquerdas se sentem órfãs por acharem que a presidência da república foi parar, pela primeira vez, às mãos da direita (como se o actual inquilino de Belém fosse de direita…), nem assim a mudança aconteceu. Se há coisa que mudou, e para pior, foi a convocação de tropa abundante para os festejos. Para quem, como o escriba, considera que entraríamos na idade adulta se prescindíssemos de toda a tropa possível e imaginária, o sintoma é de doença agravada.
Os 10 de Junho tresandam ao bafiento odor de algo que permanece fechado num armário durante um ano, bem guardado a sete chaves, e vem apanhar o ar fresco num dia estival. Espera-se que as massas adiram em peso à convocação do sentir pátrio. Para desgosto dos políticos, as massas andam mais entretidas com os feitos da “selecção de todos nós”. É aí que a exaltação nacionalista bebe todo o seu fervor. E ainda que os políticos se colem ao pessoal do pontapé na bola (como é conveniente), a malta da política é derrotada, em popularidade e como ponto de ancoragem das lealdades populares, pela malta do pontapé na bola. A bota que não bate com a perdigota.

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