2.6.06

Como a decisão de um magistrado se transforma num momento de humor



Está a fazer dois anos que o meu carro foi assaltado. Os amigos do alheio estroncaram a fechadura e levaram o auto-rádio (depois de rebentarem com a instalação eléctrica, acentuando o dano). Aproveitando-se da incúria do proprietário, que tinha deixado a carteira dentro do porta-luvas, banquetearam-se com um dos cartões Visa durante as horas que se seguiram. Apesar do proprietário dos cartões os ter imediatamente cancelado, o descuido de um dos bancos permitiu a festança que custou a esse banco cerca de 350 euros. Fiz a queixa na polícia. Sabia que a queixa teria poucas hipóteses de chegar a lado algum. O agente de serviço encarregou-se de mo lembrar, quase como se fosse um convite a não apresentar a queixa. Sempre era menos trabalho para o agente de serviço.

Nem dois meses depois, recebo informação de que a queixa foi arquivada. Falta de elementos para fazer avançar o inquérito, era a justificação. Para minha surpresa, passado um ano fui chamado a umas instalações esconsas, na Rua da Boavista, onde está a brigada de combate ao banditismo. Tinham encontrado novos elementos que podiam reabrir o processo. Só podiam avançar se eu desse continuidade à queixa. Não hesitei. Não por ter esperança em obter uma compensação pelas perdas. Apenas pelo efeito pedagógico: o direito de propriedade é sagrado; violá-lo merece punição. Ontem recebi carta registada do DIAP: “arquivamento dos autos”. Não fiquei indisposto. Com a justiça que temos, não esperava coisa diferente.

O que me indispôs foi (usando as palavras da carta enviada pelo DIAP) o “douto despacho” da magistrada. Fiquei a saber que poucos dias após o assalto, os meus cartões de crédito e débito foram encontrados dentro de um Ford Fiesta cinzento, matrícula BQ-81-47. O veículo foi interceptado no bairro do Aleixo. Como há que pôr os nomes nos bois, dentro do carro seguiam Armando Narciso Brandão da Silva, Alcino Cândido Nogueira Caldas e António José Melo Ferreira Pedro. Devem ter ido ao bairro do Aleixo visitar uma tia acamada já com a alma encomendada. Sobrinhos exemplares...

As inocentes pessoas que se faziam transportar naquele veículo foram interrogadas acerca da origem dos cartões que pertenciam ao “ofendido” (eu). O primeiro disse “desconhecer a existência dos cartões em causa no veículo, desconhecendo a sua origem”. Sacudindo a água do capote, informou que apenas tinha apanhado uma boleia. Era uma vítima colateral, portanto. O segundo também nada sabia acerca dos cartões, nem nunca os tinha visto na posse dos comparsas. O terceiro, porventura experiente nos bancos de uma universidade onde se ensina Direito, não quis “prestar declarações no domínio do circunstancialismo legal que lhe assiste” (numa redacção que pede meças ao sampaiês que fez escola).

Moral da história: os cartões apareceram no Ford Fiesta por um acto de prestidigitação. Magia pura, ou maga negra, ou alguém que quis incriminar um dos interrogados, colocando lá os cartões. Ou outra coisa qualquer. Menos a possibilidade dos cartões terem aparecido naquele carro porque algum dos passageiros os lá colocou, furtados que tinham sido. Aliás, a “douta magistrada” escreve, a certa altura, antes de decidir: “consideram-se suficientes os indícios, sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de, ao arguido vir a ser aplicada, por força de tais indícios, em julgamento, uma pena ou medida de segurança” (a responsabilidade das vírgulas é da senhora magistrada). Se tivesse começado pela leitura deste despacho, chegado a este ponto acreditava que os pressurosos sobrinhos da tia doentinha iam ficar com a justiça à perna. Pensando que os “indícios” eram suficientes. Erro meu.

No parágrafo seguinte, a iluminada magistrada asseverou que “analisados os autos, constata-se que não foi colhida prova indiciária da existência da prática de factos integradores do cometimento por parte de qualquer dos arguidos dos crimes participados, por forma a imputar-lhos subjectivamente e a contra eles deduzir acusação…” (de novo, a responsabilidade pelo linguajar arrevesado é da magistrada). “Assim sendo”, conclui, “não poderemos imputar a qualquer dos arguidos, com um mínimo de certeza e de segurança a prática dos referidos crimes”.

Pois não. Pela parte que me toca, peço desculpas pelo incómodo causado à senhora magistrada. E só estranho que o despacho não termine com um açoite no ofendido (eu) do seguinte calibre:

Muito se estranha que o ofendido tenha dado instruções para o prosseguimento dos autos, por crime que se revela uma ninharia. Quando foi interpelado no sentido de dar sequência ao apuramento dos factos, não devia o ofendido ter tomado a decisão que tomou. Com isso melindrou três cidadãos inocentes, de boa fé, apanhados de surpresa porque os cartões de crédito e de débito do ofendido aterraram sub-repticiamente no veículo que um deles conduzia. O ofendido, pelo transtorno causado, é cominado à redacção de um pedido de desculpas aos cidadãos interrogados.”
É nestas alturas que não me arrependo de ter deixado o Direito numa esquina da vida. E que reforço a ideia que ter andado a estudar Direito durante cinco anos foi um equívoco.

1 comentário:

. disse...

É a (in)justiça que temos!!
Dura Lex Sed Lex, mas só para alguns.