19.6.06

Estado de delação


Há lições do passado de que se perde o rasto, cristalizadas no bolor das palavras vãs. Retórica que aponta num sentido que não coincide com os pontos cardeais da prática. E se ninguém pode atirar a primeira pedra ao ar quando se discute o alçapão da incoerência, há alguns que deviam estar remetidos ao sepulcral silêncio pela responsabilidade a que se alcandoraram.

Dos bancos da escola vem a pedagogia do civismo. Somos educados no património genético do politicamente correcto: o que se deve fazer e o que deve ser evitado, o que se deve dizer e o que deve ser repudiado quando os discursos exalam o mais execrável. Dos bancos da escola, educação politicamente orientada: a rejeição do Estado Novo, pela coacção das liberdades individuais, pela repressão dos que ousavam dissidir da linha oficial. Entre os sinais pedagógicos para uma boa educação cívica, o Estado Novo fornece a antítese para o comportamento das criancinhas que serão os homens e as mulheres de amanhã. Nunca hei-de perder a recordação dos vários professores que martelavam sempre na mesma tecla: denunciar o outro é coisa feia. O fantasma dos bufos da ditadura ainda pairava no subconsciente de gerações que zelavam pela liberdade conquistada em 1974.

Cresci com essa imagem na retina: delatar não é acção recomendável. Aos delatores, o odioso carimbo do Estado Novo deixado no baú das más recordações. Parece que a memória é curta. Ou, ao que tudo indica, há bons e maus delatores. Os maus delatores eram os que bufavam para a PIDE, fazendo com que opositores ao regime dessem com os ossos na cadeia. Que não restem dúvidas: eram péssimas criaturas, estes delatores. Trinta anos de democracia depois parece que a memória se diluiu com o tempo. Quando se pensava que trinta anos fossem suficientes para trazer a nossa democracia para a idade adulta, eis os sinais de retrocesso. Esta trupe de socialistas não hesita em enviar sinais atrás de sinais que nos convidam a sermos um colectivo de delatores. Com a diferença, dirá a trupe cor-de-rosa, que seremos agora “bons delatores”, por causas nobres.

De repente, ocorrem-me três provas de como o governo do PS está na senda da delação institucionalizada. Há mais de um ano, no afã de combater a evasão fiscal, a trupe que nos (des)governa abriu a possibilidade do diligente contribuinte meter os pés ao caminho, entrar numa repartição de finanças e pedir para espiolhar as declarações de impostos dos vizinhos. Mais: permitiu que uma chusma de invejosos apresente queixa contra pessoas que invejam, denunciando possíveis irregularidades no pagamento de impostos.

Há uns meses, segundo acto desta tenebrosa encenação de fascismo encapotado: sob o pretexto de combater o tráfego de carne branca, que leva à exploração sexual de mulheres aprisionadas em bares de alterne perdidos algures na profunda província, a notícia de que a trupe de bem pensantes governantes da internacional socialista ia criminalizar os clientes das mulheres escravizadas sexualmente. A medida incentivava as mulheres exploradas a denunciarem a clientela. Como se os clientes fossem culpados do tráfego de carne branca, como se eles espezinhassem os direitos fundamentais destas infelizes mulheres. Creio que percebi a lógica da medida: entremeada com uns pozinhos de moralidade pestilenta (um cheirinho às inefáveis “mães de Bragança”), a imagem que é mais fácil atacar o peixe miúdo do que os tubarões.

Último episódio da sanha moralista que nos convida a sermos bufos uns dos outros: no fascismo higiénico que apontou a mira aos tabagistas, a nova lei recuou na intenção de multar os estabelecimentos onde é proibido fumar. Ao tirar com uma mão, logo de seguida não perdeu tempo em repor com a outra: o “bom cidadão” é convidado a denunciar às autoridades aqueles estabelecimentos onde tenham visto “maus cidadãos” a fumar, ao arrepio da zelosa lei.

Não há maus e bons delatores. Há apenas delatores, com a conotação negativa que a palavra merece. Não vale a pena fazer malabarismos intelectuais, num esforço para forjar um contexto que estenda a passadeira a “bons delatores”, como se por estarem ao serviço de “causas nobres” a delação seja tolerável. Delatar continua a ser coisa feia. Cauciona o anonimato de quem segreda às autoridades. Possibilita a pequena vingança. Fertiliza a síndroma da farda, empossando cada “bom cidadão” na qualidade de agente de autoridade desfardado que, todavia, fica empossado no poder de denunciar e de causar problemas ao “mau cidadão”. Se tudo não bastasse, é uma retórica que nos divide entre os “bons” e os “maus” cidadãos.
Quanto mais vejo este fascismo encapotado a galopar, mais me apetece ser “mau cidadão”, cultor do politicamente incorrecto. Nem que seja para fermentar um simples espírito de contradição. Porque me sinto asfixiado por este socialismo intolerante.

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