28.6.06

Mais achegas para a inutilidade de competições desportivas entre países: "o futebol é o prolongamento da guerra por outros meios" (George Orwell)

Como confessei há dias, decidi ser espectador assíduo do campeonato mundial de futebol. Espicaçado pelos intelectuais assépticos que sentenciaram a barbárie do futebol, alonguei o corpo no sofá e só tenho perdido jogos por imperativos profissionais (não tenho os mesmos privilégios que os senhores deputados). Foi um exercício pedagógico. Se é verdade que, de repente, me apeteceu ver uma enxurrada de futebol (o tal efeito anti-Pacheco Pereira), aproveitei para confirmar ou desmentir a ideia que fui sedimentando acerca de eventos do género: uma anacrónica competição onde se enaltece a grandeza da(s) pátria(s) contra as demais.

Ontem, no final de mais um jogo, o comentador surpreendeu com uma citação de Orwell: “o futebol é o prolongamento da guerra por outros meios”. Se as rivalidades entre clubes se explicam pelas desavenças regionais, muitas vezes pelos antagonismos figadais dentro da mesma cidade entre clubes de bairros diferentes, nas competições entre países a irracionalidade é singular. Também confesso o pecadilho. Ontem, ao ver a disputa entre a França e a Espanha, dei comigo a pensar: como seria bom que os dois perdessem! Quando o Brasil joga, sou sempre pelo adversário, qualquer que ele seja. Neste campeonato deixei-me seduzir por um certo espírito terceiro-mundista: a minha simpatia estava do lado das equipas mais fracas, os “outsiders”, sobretudo as equipas do continente africano.

Durante o jogo entre a França e a Espanha, o comentador revelou que estava em causa uma intensa rivalidade que ia além do desportivo. Uma rivalidade com contornos sociológicos. Tinha razão. É nessas competições que o irracional sentimento de pertença vem à superfície. Fervilha a exaltação quase religiosa de ser nacional de um país. A irracionalidade fala mais alto naqueles povos que desfilam a sua grandiosidade, como se fosse desígnio divino. Espanhóis e franceses são mestres na arte do chauvinismo. A essa irracionalidade reage outro tipo de irracionalidade: a antipatia que tais equipas provocam, uma reacção contra a arrogância, a altivez, a superioridade que fabrica vencedores antecipados. E depois há a gratificação suprema de os ver empacotar as malas quando regressam mais cedo a casa, com o travo amargo da derrota, finalmente reduzidos à sua insignificância.

Tudo isto é irracionalidade – ainda que seja uma reacção fermentada pela irracionalidade chauvinista desses países. Quando a pós-modernidade aponta para a emergência de uma cidadania universal, compatível com a natureza humana que faz de nós iguais entre iguais independentemente do lugar da nascença, o exacerbado sentimento de pertença fomentado pelas competições entre países é um atavismo sazonal. Assoma de quatro em quatro anos, diriam os que cultivam o optimismo de ver coisas boas até nas imagens mais sombrias. Contraponho: a sazonalidade é de dois em dois anos, porque os jogos olímpicos intercalam estes campeonatos (e coincidem com o campeonato da Europa de futebol).

Se cultivar a cidadania universal é um sinal de pós-modernidade, o futebol vive na idade das cavernas. A juntar ao frémito de ser orgulhosamente nacional do país envolvido na competição, vem o sentimento anti-desportivo que ganhou raízes na modalidade. Com o advento da lógica Mourinho (o que conta são os fins, valendo todos os meios para os atingir), a expressão fair play é um amor platónico, apenas um imaginário inculcado nas criancinhas que se deixam seduzir pelos heróis da bola. Os dois ingredientes – exaltação patrioteira e falta de fair play – compõem um cocktail explosivo. São a sagração do que há de mais irracional dentro da pessoa. E se parece que a humanidade atingiu a idade maior que a faz rejeitar os conflitos bélicos com a frequência que a história testemunhou, as guerras ganharam novos cenários. Guerras sem o poder destrutivo das armas, mas ainda assim guerras que enfrentam pessoas de nacionalidades diferentes através do desporto.
Diria, “guerras pacíficas”, por mais paradoxal que o conceito seja. Mas guerras. Do mau perder, até do mau ganhar, quando vencedores espezinham os humilhados derrotados no rescaldo de uma disputa. Uns e outros, mergulhados em sentimentos contraditórios. Os derrotados, com o orgulho pátrio ferido porque os seus não souberam dignificar a bandeira. Normalmente organizam recepções hostis no regresso dos que estavam prometidos para heróis, insultos abundantes na exaltação das emoções descontroladas. Ficam agendadas vinganças. Quando a selecção portuguesa reencontrou a Grécia na final do Euro 2004 depois da derrota do jogo inaugural, um amigo enviou-me um lapidar SMS: “it’s payback time”. Os países encontram-se e fazem a contabilidade dos jogos passados. Às derrotas recentes jura-se a vingança fria: o redobrado sabor doce da vitória vem servido no prato da vingança. Irracionalidade no estado puro. Os vencedores exaltam o feito, enobrecem a façanha, gabam-se pela pertença a uma nação de maiores, desfilam pesporrência. Como se os feitos no futebol das nações fossem o barómetro da grandeza de um país.

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

No meio de tantas divergências, ainda conseguimos partilhar um ou outro pecadilho: também quero que o Brasil perca e no Espanha-França também suspirava que pudessem perder ambas, situação que se vai repetir no Brasil-França. Aliás teve piada já hoje receber um e.mail a dizer algo como: "Podemos não vir a ser os melhores do Mundo, ou sequer os melhores da Europa, mas já somos os melhores da Península Ibérica!" Já não partilho dessa simpatia paternalista pelos coitadinhos dos Africanos. Quero que eles percam todos (já perderam, bem como os Asiáticos). As minhas prefer~encias estão, aliás, perfeitamente identificadas em http://rosa-laranja.blogspot.com, no post "Campeonato do Mundo - 1" datado do início de Junho (desculpe a publicidade gratuita).
Quanto ao resto, não se ofenda, mas o Paulo luta contra moinhos e vento como Dom Quixote. Sabe bem que a cidadania europeia é sentida por uma pequena minoria e a cidadania universal por menos pessoas ainda. Quase por definição, as pessoas têm de ter sentimentos de pertença e de comunhão com outras pessoas, grupos, entidades e fenómenos intangíveis que nos ultrapassam. E o país é um desses factores cruciais de identificação e que não se ultrapassa, apenas porque é, supostamente, demodé ter esse sentimento, da mesma maneira que as pessoas não aceitam conferir aos seus concidadãos o mesmo grau de afecto e proximidade que têm com a família (outro factor de identificação).
Quanto à irracionalidade desta manifestação patriótica que identifica no Mundial, ela sempre existiu; mas como os tempos mudaram, esse fenómeno está mais exposto e mediatizado e já há quem se vista (?) a pensar na TV ou nas câmaras do Estádio. Diga-se, finalmente, que a uma escala menor, o fenómeno que vê na Alemanha, é o que vê na Luz, Alvalade, Antas, Old Trafford, San Siro ou Amsterdam Arena todas as semanas. A grandxe diferença é que a pulverização é maior e a "guerra" transforma-se em "guerra civil" que, como sabe, são das piores guerras...
Ah, convém referir que a citação de Orwell, não e mais do que uma adaptação da célebre afirmação de Von Clausewitz.