31.7.06

Aleluia


Por um momento ensaio desprender as amarras do agnosticismo. Pretendo ser crente de uma religião qualquer. Sobretudo daquelas que não hesitam levar os fiéis ao teatro da guerra, nem que seja necessário morrer no campo de batalha, corpo decepado por uma granada assassina ou por um obus mortífero. Tento perceber se a metafísica se compadece com o espírito guerreiro dos homens. Ou se as religiões, quando se guerreiam, não são o contrário do que apregoam aos fiéis.

É da história da humanidade: guerras santas, onde os homens que matam os seus semelhantes obtêm a absolvição divina por matarem em nome do deus adorado. Os guerreiros não questionam o sentido da guerra. São a carne para canhão necessária que alimenta a superioridade de um deus que fala através do clamor da colectividade. Assim foi com as cruzadas, assim se matou em nome da ortodoxia católica, e hoje continua-se a ferro e fogo porque há religiões que se chocam. Mais que um choque de civilizações – usando a expressão que Samuel Huntington tornou conhecida – acredito que se trata de um choque de religiões. Elas continuam a exibir todo o seu potencial. Continuam a perfumar a existência dos homens, a seduzi-los com as promessas de vida eterna na dimensão celestial, a amedrontar a vida terrena com o estigma do pecado.

O deus, qualquer deus, é bondoso. Os livros sagrados de qualquer credo não se desviam desta matriz. A bondade divina inspira os artesãos que deus colocou na terra. É através dos artesãos, humildes servos, que as pétalas aspergidas pelos bondosos dedos divinos cobrem as terras com o manto sagrado da protecção de deus. Mas os homens divergem nas crenças. Deus não terá aparecido com a mesma forma, a mesma cara, a proclamar as mesmas mensagens inspiradoras das crenças. A divergência religiosa nutre a violência. A humanidade vive de costas voltadas porque não se põe de acordo na metafísica. Quando a divergência faz rebentar a corda esticada ao limite, é em nome da superioridade de um deus que os homens sangram até à morte. A bondade divina alimenta-se no sangue dos inimigos, que não se revêem na superioridade do deus rival. São sacrificados no campo da batalha, para vergar a religião oposta, dobrá-la de joelhos no humilhante reconhecimento da superioridade trazida do campo de batalha.

O deus, todos os deuses, vomitam bondade através da indómita violência que os seus seguidores exercem sobre os teimosos que professam credos diferentes. E se as divindades cantam loas à tolerância entre diferentes, os seus sacerdotes inquinam a retórica com a saga bélica que patrocinam. Fossem os deuses entidades omnipresentes e omnipotentes e decerto a venenosa mensagem dos sacerdotes, convocando as hostes para a violência sobre os fiéis de outros credos (que levam logo com o rótulo de infiéis), não passava das intenções. Os deuses, com poderes sobre-humanos para comandar a vontade dos homens, encarregar-se-iam de ciciar palavras de paz, elas sim encerrando o manancial da bondade de que os deuses se dizem penhores.

Dizem-me que deus permite o livre arbítrio dos homens. Que eles, no exercício do livre arbítrio, se apartam da bondade inata de deus. Se há maldade no vocabulário da humanidade, deve-se apenas à acção dos homens. A explicação não me convence. É a prova da incapacidade dos deuses. E se os deuses são incapazes, ineptos para levar a vontade humana pelos caminhos da bondade, essas entidades serão coisas fantasiadas no imaginário colectivo; mas não serão deuses.
A retórica habitual das religiões prega que o Homem foi concebido à imagem de deus. Quando as bombas continuam a explodir em nome de um deus, quando há vidas inocentes levadas do reino dos vivos em nome de um deus que não é o delas, quando os desavindos de uma crença são filhos de um deus menor, convenço-me que os deuses são entidades espúrias, os dedos que comandam os cordelinhos de uma gigantesca marioneta colectiva cega pelos dogmas da crença, prontos a disparar o gatilho para que a sua religião vença o torneio das crenças antagónicas. Quando tudo isto é encenado vezes sem conta, o convencimento que deus não existe. Ou que é um pretexto para os desvarios dos homens, acovardados numa entidade fictícia invocada para responsabilizar os seus actos.

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