1.8.06

Contradições que o vento não leva



Ninguém consegue apresentar durante muito tempo uma cara à multidão
e outra a si próprio sem acabar por não saber qual delas é a verdadeira.
Nathaniel Hawthorne

Do fim-de-semana, através do órgão oficial do regime (o Expresso), soube que a nefanda extrema-direita anda a fazer recrutamento junto dos indefesos jovenzinhos das escolas secundárias. O mundo bem pensante ficou aterrado, indignado, preocupado com a possibilidade da angariação de futuros militantes de cabeça rapada e mão erguida ao alto se saldar por um sucesso. Assim como assim, é o fantasma de quarenta e oito anos de obscura ditadura a pesar no subconsciente, ainda que já tenham dobrado três décadas sobre o toque de finados dessa ditadura.

Dois dias depois, uma das promessas há muito agendadas pelo governo socrático: a publicação de uma lista com os nomes dos grandes devedores ao fisco. Acto pedagógico, informam-nos com candura. Para reforçar a ideia que a listagem posta a circular na Internet só tem predicados pedagógicos, a bem oleada propaganda do governo (com a necessária câmara de ressonância da comunicação social, que continua a comer na mão do dono) assegurou que nos últimos dias recuperou uns cobres de impostos em dívida. Diz a propaganda governamental que se tratou de devedores compulsivos que tiveram um rebate de consciência ao saberem que os seus nomes iriam parar à praça pública. Falta saber se não era apenas uma lustrosa mentira para embelezar a pedagogia da rectidão fiscal.

Há duas moralidades. Duas caras diferentes, consoante as circunstâncias, moldáveis perante o oportunismo de quem não hesita em pregar hoje uma coisa e amanhã praticar o seu oposto. Percebo a indignação de algumas almas penadas que ainda vivem assoberbadas pelos fantasmas da ditadura. Sofreram na carne as consequências da hedionda opressão policial. Algumas delas foram privadas de liberdade por delitos de opinião. Rejeitam regressar ao passado, nem que o remexer no baú das recordações seja apenas isso, mexer num baú empoeirado. São pessoas que enchem os pulmões para entoar hinos à liberdade. Logo de seguida embaciam a liberdade com a intolerância em relação a movimentos de extrema-direita que, já o sabemos, não cultivam a liberdade e a tolerância.

Os socialistas dominantes exibem, como é hábito, a arrogante mania da sua superioridade moral. Como se fossem penhores da ética suprema, incontestável. Ouço-os a perorar lições de moralidade, navegando as águas bonançosas dos imperativos categóricos. Não há lugar a dissensões. Se teimosos insistem em ver o mundo com outras lentes, são arrumados para o reduto da menoridade intelectual. Por mau feitio que seja, permito-me dissidir. Nem que seja pelo direito à diferença, para furar o “consenso” (palavra em moda no vocabulário socialista) que nos atira para a dormência inquietante.

Foi o Expresso, não o PS ou o governo, que anunciou a preocupante nova: execrandos militantes da extrema-direita, passeando-se pelos portões das escolas secundárias, aliciando a malta jovem para se alistar na causa nacionalista, xenófoba, racista, anti-democrata. Mas o Expresso informou que a polícia traz estes angariadores debaixo de olho. A polícia que responde perante o intolerante (e intolerável) ministro Costa. O governo, o PS, portanto. Porque fica bem passar a imagem da perseguição aos que têm o impudor de cantar saudades ao “fascismo” derrotado em 1974. Que importa se o sumo da notícia se limita a umas tímidas e insípidas gotas de uma laranja nada sumarenta? Alguém se interrogou que os jovenzinhos aliciados são acéfalas criaturas mais interessadas com as vicissitudes da série juvenil “morangos com açúcar”?

Entretanto, as imaginativas manobras para combater a evasão fiscal levaram este governo ao impensável: à semelhança do que sucede com pequenos cafés e supermercados de província que afixam cartazes com letras garrafais denunciando os vizinhos que se esqueceram de saldar o tradicional fiado, o fisco publicou uma listagem dos grandes devedores. Para ficarem sujeitos à vergonha da “censura social”. Pensam os ingénuos do ministério das finanças que isso há-de resolver o problema da fuga aos impostos. Este há-de ser um país uma vez mais exemplar: daqui a um par de anos, de certeza que deixará de haver maus pagadores de impostos. Tão certo como o sol começar a nascer na linha de horizonte onde o mar se funde com o céu.
Pela parte que me toca, não é a censura social que me move em relação às pessoas e empresas que estão na lista de proscritos. É inveja. Não vou vestir a camisola da vizinha coscuvilheira chafurdando nas listagens, para saber quem são os grandes devedores de impostos. Há maneiras diferentes de apontar a pistola à cabeça de um condenado. As ditaduras fazem-no através dos dedos dos seus mórbidos agentes policiais. As democracias que querem transparecer uma musculatura tonificada têm truques na manga: colocam o revólver na mão do perseguido, com um atilho entre o polegar do condenado e a culatra, à espera que um vento agitado mova o atilho. A culpa será sempre do vento que soprou forte quando não devia.

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