28.7.10

Com o diabo no corpo (ou o que a ganza faz)


In http://vishows.files.wordpress.com/2009/08/tricky.jpg
Às vezes parecia um exorcismo. Parecia que o artista, depois de andar alheado – minutos de costas para o público, como se ali não estivesse – subia das entranhas numa explosão arrebatada. O corpo trepidante desafiava a lógica: como podia haver tanta energia em corpo tão franzino? A voz aos soluços, o microfone sincopado contra o peito nu num eco seco em simulação do coração fervente em suas batidas ritmadas. E o corpo contorcia-se, uma e outra vez, a gutural voz arranhando os seus decibéis na fúria com que os microfones esvoaçavam em errância descontrolada. Não era exagero dizer que parecia possuído e a música decantava a posse que dele se apoderara. Exorcismo, pois.
Uma entrega total, em sobressalto contínuo. Total, a entrega, nos interstícios de um copo de cerveja, de “mais um charro para aviar”. Sem nunca deixar de ser uma espécie de maestro fora da convencionalidade. Marcando o ritmo, a entrada deste ou daquele instrumento quando achava que era a sua vez de jogar o protagonismo. Com um simples, ditatorial gesto de um braço, sem precisar de ordenar com a voz. A voz ora lúgubre, ora numa pulsão que parecia libertar o diabo aprisionado no corpo franzino. Às vezes, a voz entrava num harmonioso matrimónio com a deliciosa, suave voz feminina que o acompanhava.
Os sons agigantando-se, como se a subida a uma íngreme ladeira empurrasse o corpo em velocidade alucinante por ali acima. Os sons vertiginosos teciam-se pela batuta dos pulos ritmados no caleidoscópio das luzes emprestando psicadelismo aos fumos ilegais que o corpo ia sedimentando. Nada que a muito acertada gente, cultora das legalidades em riste, aprovasse. E, todavia, há doping necessário para libertar as algemas que ao início da função separam o artista do público. Dir-se-ia, ao começo, que adejava alguma desconfiança recíproca. A timidez ainda não aplacada pelo cocktail de álcool e “substâncias ilícitas” punha o artista à distância – e ele que estava à mão de semear dos espectadores, que tomaram a iniciativa de romper o gelo, saindo dos sossegados, sentados lugares, encostando-se às grades que estavam a um metro do corpo franzino, tronco nu, do artista ainda ensaiando o seu transe.
Por duas vezes desautorizou os seguranças (pondo-os à beira da apoplexia) e chamou os espectadores ao palco. Actuou com os espectadores no palco, numa festividade sagrada pelas luzes que se compunham com os sons agrestes da guitarra engolida pelo público em delírio. Tribalismo a rodos: a simbiose entre o artista e a audiência, como se a audiência deixasse de o ser, aquelas dezenas de pessoas extasiadas a personificar, nuns minutos de glória, artistas que alguns apenas ousaram sonhar. Nunca vira tamanha comunhão em palco.
Tribalismo festivo, ainda. Lia-se no folheto distribuído à entrada que as influências culturais se desdobravam num catálogo versátil (do Reino Unido à Jamaica, da França a África). A espaços, a coreografia hipnótica, intervalada pelos sons ininteligíveis entoados ao microfone, levava-nos em viagem imaginada à profundeza da selva africana. Como se fossem rituais ordenados por um curandeiro guru da tribo. E a tribo correspondia, prolongando a festividade, em comunhão com o artista já destravado pelos efeitos psicotrópicos dos estranhos cigarros que ia fumando.
Saí do concerto sem perceber por que as convenções sociais teimam em proibir estas “substâncias ilícitas”. Os adversários do hedonismo teriam saído ainda na madrugada do concerto. É que eles são tão assertivos da ordem, da lei e da grei que a castradora formatação católica preconiza, ela tão a jeito da paternal autoridade do Estado a que devemos obediência. Eles reprovariam o que era dado a ver aos seus olhos. Pacheco Pereira & companhia não teriam apreciado a função.
(Concerto de Tricky na Casa da Música, Porto, 27 de Julho de 2010)

2 comentários:

Bruno Freitas disse...

muito bom!

cjt disse...

mui bien!