14.3.14

O homem sem medo das palavras

Dead Combo, "Esse olhar que era só teu", in http://www.youtube.com/watch?v=YpYD2PVI-_w
Incomodado com as palavras urdidas, fazia gala de delas soltar os freios. Por sua dignidade e por solene homenagem às palavras, que não merecem uma atadura em nome de peias que as sequestram e em nome daqueles que as não chegam a dizer.
As vontades cercam a destreza da palavra. Põem-lhe uma camisa de sete varas, sitiadas que ficam pelas delicadezas, pela funesta cortesia, pela diplomacia que coalha o livre arbítrio, pela escusa em magoar sensibilidades. Em tudo o seu contrário: rarefeitos os dedos acusatórios que avisam sobre a precatada palavra, desembestava-as. Corriam soltas, como se tivessem crina de cavalo em alegre correria pelo areal deserto, de um cavalo irrefreável.
Sabia que vinha acusado de desbragamento. Dele diziam ser um incorrigível incontinente da palavra. Metiam-no nas margens, pois rompia com a emaciação socializada e incomodava os bem pensantes que detestavam o pensamento de outro modo, ou o modo outro de usar palavras proibidas. Não capitulava. Cuidava de escolher as palavras que vestissem a polémica. Metia os pés ao caminho dos assuntos evitados. Preferia deitar-se no sossego do sono, sem mácula pela depreciação dos curadores da normalidade entronada; não era capaz de reprimir palavras à boca de cena. As palavras porventura não lhe perdoariam. Quem sabe se elas se podiam vingar, povoando nele o deserto das palavras. E ele que vivia da palavra como precisamos de oxigénio, não queria que o risco fosse fermento da insónia. Não era oportunismo. Uma têmpera de coragem interior afivelava o destemor das palavras. Só tinha uma proibição que respeitava: era proibido haver proibidas palavras.
Os dissabores, podia bem com eles. Pior ficava só de pensar que o podiam forçar à contenção verbal para não destravar a ira dos feitores da rotina convencionada. Não era mal que caucionasse ameaça. A provocação era militante. A palavra destravada também. Não havia lugar ao medo das palavras. Para não insultar as palavras que eram todas suas musas. As mais encantatórias, as anónimas, as inodoras, as rebeldes, as palavras sentidas, ou apenas as que adejavam sem sentido algum. Não podia, nem queria, existir sequestrado pela vedação onde ficavam impossíveis as palavras malditas. Pois todas eram para serem ditas.

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