Protomartyr, “Wheel of Fortune”, in https://www.youtube.com/watch?v=has3qKCRo0A
(Ficha número xxxxx/1981, do cidadão Xxxxxx Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, depositada no arquivo central dos serviços secretos)
“Eu gosto de escândalos. De todos os géneros. Daqueles que vociferam ideias implausíveis, só pelo prazer de ver os situacionistas de todas as estirpes, dando azo à colérica coligação que patrocina os bons costumes, a saírem da toca e, irados, rebaterem um por um os argumentos que são tão implausíveis como a teoria em que se alicerçam.
Eu gosto de escândalos. De provocar as pessoas, desafiando-as a libertarem-se das algemas que tolhem a individualidade. E, ato contínuo, mesmo que se insurjam em coro contra mim, não me importo: ao menos abjuram a letargia que os apequena.
Eu gosto de escândalos. Gosto de dizer o contrário do que penso (mas não sei ao certo o que penso, pelo menos neste momento) e assistir, sentado na primeira fila da plateia, aos iracundos defensores do contrário do que proponho atacarem as ideias que alinhavo. Admito o prazer sublime de vê-los de atalaia à protegida normalidade, soltando os mastins esfaimados que desejam um pedaço da minha carne, mesmo sem saberem que aquilo que proclamo não corresponde ao meu pensamento (seja ele qual for, que não tenho a certeza de ser o que é).
Eu gosto de escândalos. Da promiscuidade, por exemplo. De provocar a volúpia mal disfarçada de senhoras cobertas pelo manto moral da igreja. De provocar o suor no sangue e depois deixar a febre ficar sozinha em seu canto, com a promessa de posterior investida. Gosto de tresandar a imoralidade e de ser apedrejado pelos vícios que não oculto.
Eu gosto de escândalos. Gosto de infundir polémica intelectual que, não fosse o muito tempo livre dos intelectuais e uma inclinação para polemizar gratuitamente, nem saía dos currais da divergência sanável. Gosto de desafiar a agilidade dos eruditos, de os ver defendendo suas virginais damas em esgrimida prosa gongórica, e de pontuarem os argumentos de autoridade com ataques pessoais que julgam serem desqualificativos da minha pessoa. Engasgo-me com tantas gargalhadas ao vê-los digladiarem-se já em minha ausência do palco da polémica.
Eu gosto de escândalos. Porque gosto de ser julgado como pária de todos nós. É julgamento que não confere punição (a não ser a que mais me contenta: ser marginalizado das franjas do aceitável, arrostando o rótulo de sociopata).
Eu gosto de escândalos. Porque detesto concordar, num onanismo coletivo que nos ponha a bolçar mínimos denominadores comuns, pela homenagem ao princípio geral da convergência que se alinha na antinomia das diferenças (vistas como matéria passível de ostracização).
Eu gosto de escândalos. Porque sim – e este é o meu argumento definitivo.”
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