8.3.19

A escultura de Sísifo atingiu a cumeeira (short stories #100)


Shame, “Friction” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=PiF6nlZcjtE
          Um compasso de espera, à espera da alvorada e da claridade quimérica. O silêncio só quebrado pelo murmúrio do mar cansado e por um ou outro pássaro que volteia na sagração da manhã. Um dia que se repete. Dizem os desenganados: todos os dias são uma mera repetição, um monótono monólogo em que somos manada. O aroma da abdicação não combina com a promissora alvorada – mas, afinal, as manhãs são todas promissoras, dizem, menos quando se seguem a um sono sobressaltado. Há empreitadas que continuam em fila de espera. Para gáudio do sossego interior, segreda para si mesmo que hão de continuar em fila de espera. E isso é um conforto. O que seria se um dia acordasse e não fosse capaz de inventariar uma única empreitada em espera? Teria capacidade para inventar uma empreitada no dealbar do dia? E, caso não fosse capaz, o que seria do dia assim vazio? Não queria que o mito de Sísifo fosse exposto ao contrabando. Não queria que a perseverante estátua de Sísifo conseguisse atingir a cumeada, depositando, enfim, a volumosa pedra que empurrou montanha acima. Não queria: temia que o contrabando do mito de Sísifo pudesse representar o inverno da vida, já sem mais nada por esperar – ou por capitulação das empreitadas em fila de espera, que assim ficariam destinadas ao oblívio; ou porque convencionara, ao menos que fosse por uma cartada de oportunidade, que a agenda das empreitadas era um caderno em branco no qual já não tinha serventia inscrever o que fosse. Mas, o inverno da vida significa a decadência irremediável? Sísifo não teria resposta. Sabia que depois do inverno vem a primavera. A reparação da aridez invernal, uma centelha a desatar os nós em que se consumiu a hibernação. E concluiu que a primavera consequente ao inverno é a metáfora de Sísifo (porventura contrabandeada no seu sentido). A escultura de Sísifo derrotou as forças incalculáveis que antes a tinham derrotado tantas vezes. Isso aconteceu no dia em que a primavera depôs o inverno. Esta é a gramática dos dias felizes.

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