Anohni, “Drone Bomb Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=aUEoic7ro_o
Ato I
Uma tempestade sem precedentes foi madrasta para uma parte de Moçambique. Fala-se da pior catástrofe de todos os tempos. Ainda por cima, num dos países mais pobres do mundo. Quem for cínico pode perguntar pelo paradeiro de deus, que se terá esquecido (se, por acaso, existisse) da impiedade que é devastar uma terra onde vive gente tão pobre.
Ato II
A ajuda internacional é uma emergência. Para socorrer os sobreviventes que perderam os haveres – casas, terrenos, animais, fontes de subsistência, comida e água. Numa daquelas circunstâncias em que o mundo humano dá uma reviravolta sobre si mesmo e apetece nele ter um módico de confiança, a solidariedade corre de boca em boca, dos governos dos países às empresas, das organizações não governamentais ao mero cidadão disposto a rapar do fundo do tacho uns trocos que seja.
Ato III
Numa manhã soalheira e, adivinha-se pela indumentária, calorosa e húmida, a propaganda do Estado e do partido dominante chega ao olhar dos cidadãos através da encomenda zelosamente tratada pelas televisões, que não deixam de ser servis ao Estado (e, vá-se lá saber porquê, ao partido do regime). O secretário de Estado exclama, à frente das câmaras que o filmam, “chegámos e fomos os primeiros a chegar!” Exclama, com uma obscenidade nauseabunda. Como se o que estivesse em causa fosse uma corrida dos generosos para saber quem chegava primeiro ao lugar carenciado da ajuda. Só para assinalar a proeza. Como se fosse uma repetição dos descobrimentos e esta nova gesta de colonizadores disfarçados estivesse a firmar a sua lança no território colonizado – perdão, carente de ajuda – e o desafio saldado com triunfo mercê da diligência de governantes tão esmerados fosse o que interessa à audiência nativa, não a do país ajudado, mas do país onde a notícia e a soberba do Carneiro (identificação do secretário de Estado) tivesse de ser ostentada para os patrícios começarem o fim de semana com uma “boa notícia”.
Ato IV
Volto às imagens mentais do Carneiro, da sua babugem vaidosamente escorrendo da boca que proferia aqueles palavras, o epítome da náusea, a demonstração de que o que continua a interessar não é prestar ajuda a quem precisa, mas exaltar a pátria (e o partido do regime, ainda por cima em pré-campanha eleitoral) através da ajuda levada a quem dela precisa. Era o Carneiro a mostrar que a ajuda aos outros serve, em primeiro lugar, para ajudar a puxar lustro às medalhas da pertença pátria e, para os que alinham na seita, do partido do regime. Eu fico com o vómito. O Carneiro – que, quero acreditar, terá sabido engolir a altivez ao dirigir-se aos moçambicanos – fica com toda a pestilência da pose obscenamente pútrida. Se isto é orgulho pátrio (perversamente confundido com demagogia partidária em tempos que a isso se prestam), eu prefiro ser apátrida. E quem for cínico pode, ainda, perguntar pelo paradeiro de deus, que deu caução à babugem putrefacta do Carneiro.
Sem comentários:
Enviar um comentário