6.3.19

3D (short stories #99)


Karen O and Danger Mouse, “Woman”, in https://www.youtube.com/watch?v=W4yhzATxyz0
         Das páginas do livro, o entorpecente improvável: imagens que se leem atiradas ao olhar em realidade 3D. É como se ouvíssemos as palavras ditas nos diálogos, conseguíssemos ler o rigor das rugas de um idoso sentado no banco do jardim, a ferrugem que tomou conta de um pilar do banco do jardim, às mãos viesse parar uma folha caduca errando no vento outonal. Como se os lábios da mulher melancólica subissem ao rosto e os sentíssemos, carnudos, depositando um beijo. Ou como se soubéssemos do tamanho da maré e o perfume da maré-baixa, devolvendo o aroma das algas sazonalmente despojadas no areal. Podia até acontecer que fossemos capazes de desenhar a exultação do jovem estroina quando mergulha na boémia, sitiado pelo efeito de substâncias ilícitas e com ele conseguíssemos desenhar a caótica coreografia. Ou podia ser que fôssemos capazes de intervir no diálogo entre dois homens penhores da angústia, enquanto degustavam mecanicamente a refeição no intervalo para o almoço. Seríamos adestrados na arte de trazer aos sentidos os sentidos decantados nas páginas dos livros e, sem darmos conta, estávamos por dentro do enredo, narradores complementares ou acrescentos de personagens à narrativa. De caneta na mão, seríamos mais do que meros narradores ou personagens: seríamos a adulteração da autoria, reescrevendo o enredo à medida que as imagens tridimensionais assomassem aos sentidos. Às escuras, escrevendo sem critério, a não ser o cerdoso papiro legado para memória futura. Sabendo, contudo, que o papiro não sairia de casa, reservado ao íntimo exercício do palimpsesto vociferado pelo impulso volitivo dos sentidos alimentados pelas imagens 3D. Haveria instâncias arriscadas no exercício. Páginas de livros a evitar, sob pena de a simbiose dos sentidos (próprios e os importados das páginas lidas) ser o alfobre de desprazeres, dores, precipícios no limiar da morte, dependências várias. Experiências, talvez. A não ser que a simbiose se adestrasse de tal arte que, a páginas tantas, já não saberíamos o que era safra das páginas e o imaginário transfigurado em realidade mercê da impressividade 3D. Momento em que emissários da ponderação, no altar sufragando os limites do possível, aconselhariam a não sabermos deste estado imersivo e, ato contínuo, recomendariam a não leitura. Venceria o desafio, mesmo correndo riscos inomináveis: o risco traz a recompensa da literatura.

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