Orelha Negra, “A Cura”, in https://www.youtube.com/watch?v=S8id5ZuolFE
Moral da história? Não há moral da história. Não há sequer história, como pode haver uma moral de uma história que não existe? E se existisse: teria de haver uma moral atuante? Faz parte das convenções: quando alguém conta uma história não é um narrador desinteressado, limitado à imparcialidade desse papel; é um agente interessado que procura encontrar os rudimentos de uma moral nas entrelinhas da história narrada.
As histórias são instrumentais. Estão ao serviço da moral prosseguida. O seu lugar, que devia ser centrípeto, é adulterado. É difícil congeminar histórias que se autonomizem de um segundo sentido nelas embebido. Corresponde à desvalorização da narrativa e do enredo que a alicerça. Porque o narrador (quando é também autor) articula com um certo sentido moral, manobrando nos interstícios da narrativa para chegar ao objetivo moral pretendido. Pode-o ser pela afirmação de uma mensagem, uma moral que se distingue pela construtiva (mesmo que seja destrutiva na sua ação): é construtiva, porque o enredo se entretece na suposição de vir a desaguar numa moral afirmada. Mas também o pode ser pela negativa, a desconstrução de um etos, movendo a história através de uns corredores estreitos que terminam num epílogo rejeitado pela moral que se pretende afirmar.
As histórias deviam ser exímias praticantes do salto à vara. Para poderem ultrapassar, e com suficiente margem de segurança, as tentações da moralidade que se abeirem das histórias. Para não as tornar reféns de imperativos de moralidade. Até porque a moral não é um valor medido pela sua singularidade, por ser permeável ao subjetivismo. Poder-se-á contrapor: restringir a associação de padrões morais a histórias é totalitário, uma possível castração de quem tece o corpo de uma história – e, por essa medida, recusável. Admita-se que sim. Admita-se, do mesmo modo, que uma moral arregimentada para coroar uma história pode provocar o mesmo efeito totalitário no destinatário da história, exposto a uma (na sua maneira de ver) inaceitável moral ungida pelo narrador da história. Não é que sejam danos de grande monta: uma moral vertida numa história que se amotine contra as preferências do leitor é uma moral que tem um efeito pedagógico: o leitor coloca-se nos antípodas dessa moral, construindo (ou reforçando) aqueles que julga serem os seus padrões. Se é que isso é uma prioridade.
Uma história saltando à vara sobre os esteios morais encerra uma pureza que não se subordina a qualquer orientação moral. Dir-se-á: é uma histórica moralmente assética. E mais difícil de produzir, por essa razão. Todavia, ao ser moralmente assética não deixa de conter a sua própria moralidade: uma posição no sentido da não moralidade acaba por confluir numa posição moral. O que reforça a impossibilidade de desligar as histórias de um certo sentido moral.
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