1.3.19

Acelerador a fundo (short stories #98)


Beirut, “Varieties of Exile” (live at Music Hall Williamsburg), in https://www.youtube.com/watch?v=JNAm1t63vCI
          No apeadeiro deserto, o comboio de alta velocidade passa a alta velocidade. Parece um breve sismo, despenteando as terras que se sobressaltam com o troar veloz. “É desta têmpera que somos feitos”, atiras, sem recuares o olhar no vendaval detonado pelo comboio. “Como assim?”, replico, fazendo de conta que não sei ao que vou. “Neste vulgar mundo, em que quase tudo se congemina no adiamento, ou no arrastamento do tempo só para não se travar encontro com o sacrifício das empreitadas, não nos intimidamos. Queremos sorver até ao tutano todos os segundos oferecidos pelos relógios a que não damos atenção.” Inspiro, profundamente. As folhas das árvores ainda dançam sob o efeito do breve vendaval arquitetado pelo comboio de alta velocidade. Interiorizo as tuas palavras. “Tens razão. Connosco, o acelerador vai a fundo. Não diremos que vai sempre a fundo, porque também somos corredores de fundo e sabemos que, às vezes, temos de abrandar para reter nas mãos quimeras que não podemos desperdiçar.” Sem demora, acrescentas: “É disso que estou a falar. Mesmo nos interstícios, quando dizes que abrandamos, fazemo-lo à nossa maneira, de acelerador a fundo. Não queremos ser apanhados em falso por um qualquer demónio que pressinta a distorção do tempo.” Outro comboio, que não é de alta velocidade, estaciona no apeadeiro. Vagarosamente. Alguns passageiros fazem transbordo. Ninguém entrou nas carruagens – só lá estávamos nós. Ao assobio do funcionário do apeadeiro, o comboio inicia a marcha. Vagarosamente. Rangendo por todos os lados. Movendo-se a custo. “É disto que estou a falar”, repetiste, tossicando pelo meio, “nós somos os antípodas deste comboio. Sabemos que somos corredores de fundo, mas recusamos a ideia da capitulação. Somos, ao mesmo tempo, corredores de fundo e comboios de alta velocidade, quase sempre com o acelerador a fundo. Até quando sonhamos sonhos uníssonos temos o acelerador a fundo.” A voz emudeceu. Já não tínhamos nada para fazer no apeadeiro. Queríamos saber como era ser testemunha de um comboio de alta velocidade quando esvoaça, a duzentos e vinte quilómetros à hora, de acelerador a fundo, através de um apeadeiro.

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