Nils Frahm, “All Melody” (Live at Montreux Jazz Festival), in https://www.youtube.com/watch?v=J44C184Dd7c
À noite os navios fundeiam à espera de vez. As suas luzes espraiam-se sobre o mar, emprestam-lhe um pouco do dia que findou. Não sei que regra impede os navios de se refugiarem no cais quando é noite. Talvez seja uma determinação dos zelosos sindicatos. Os estivadores não trabalham à noite. Têm famílias para cuidar.
Sacrificados são os marinheiros que podiam estar a foliar nos bares onde os desembarcados matam saudades dos pés em solo firme. Como os navios não fundeiam à noite, os marinheiros postergam a folia. Entretêm-se com um jogo de cartas, um cigarro no convés, a apreciar a terra firme que hão de pisar, se tudo correr bem, na manhã do dia seguinte. Põem-se a fazer contas de cabeça. Ao que vão fazer a terra. Sonham, sem estarem a dormir. A certa altura, a cabeça não chega para todas as contas que a percorrem a velocidade tão voraz. A mesma voracidade com que os marinheiros querem ir a terra.
Começam a fazer a contabilidade das empreitadas no avesso do dia que já fugiu. Aproveitam as estrelas que irradiam no céu para juntar as pontas da aritmética. Vão comprar mantimentos, que a vida a bordo é espartana. Vão conhecer a cidade (os que não a conhecem), para matar tempo para a noite de boémia. Os que conhecem a cidade vão servir de cicerone. E vão jantar em bons restaurantes, escolhidos a dedo num roteiro da especialidade (que os há aos magotes na sala de convívio do navio) – o seu estipêndio é generoso e autoriza estes luxos. À saída dos restaurantes, estarão embriagados. Não fará confusão a constelação de luzes distorcidas, a amálgama de luzes dos candeeiros públicos, dos faróis dos automóveis, dos néones da publicidade, das montras das lojas que, embora fechadas depois da hora do expediente, continuarão a lembrar que o consumo é imperativo para a fruição da economia.
Porventura um marinheiro, embaciado na lucidez, há de pertencer a uma briga no primeiro bar em que desembarcarem. A correr mal, passará a noite na esquadra a curar a ressaca e a lamber as feridas do orgulho ferido. Os outros, não impressionados com a desdita do que foi levado pela polícia, hão de se entregar aos vícios da carne, para compensar a vida monástica das semanas a fio em que estão embarcados. Os que conseguirem, derrotando a litania do álcool.
No dia seguinte, quando acordarem já nos seus camarotes, não hão de guardar grandes memórias. A menos que convoquem o avesso do dia e resgatem todas as anotações que nele lavraram. A sua aritmética. Se ao menos pudessem perguntar ao álcool pelas memórias que ele não deixou representar. Mas o álcool evaporou-se. E levou as memórias, apagando-as do avesso do dia.
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