Street Kids, “Propaganda”, in https://www.youtube.com/watch?v=Uv4tV4gnZzw
Dos cães acorrentados, em casotas insalubres, expostos aos rigores do inverno e à canícula do verão, comendo os restos das refeições dos humanos, sem direito a um afeto, descuidados como coisas à mercê da vontade de quem os destutela. Os cães perdem a liberdade, ou nunca a tiveram. Os seus exíguos movimentos na exata medida da folga, da pouca folga, da trela que os acorrenta. Bandos de gente antropocêntrica nada ajuíza sobre os cães acorrentados. Que é uma forma de tecer um juízo: se a imagem de um cão acorrentado, macilento, esfaimado, medroso, não lhes invade a consciência, é sinal que cuidam do cenário como objeto de normalidade. Melhor será não proferir juízo sobre as almas abestalhadas que mantêm os cães nesta escravatura.
Um punhado de gente insurge-se. Denuncia os maus-tratos, que é sempre maus-tratos manter um cão acorrentado a uma casota insalubre, exposto aos rigores do inverno e à canícula do verão, comendo os restos das refeições dos humanos, sem direito a um afeto, descuidados como coisas incorpóreas. Não sabem que é insuficiente. Não sabem que a vergonha antropocêntrica permanece esteio da civilização, embaciando os seus pergaminhos de civilização (o que não é da conta dos que patrocinam esta escravatura medieval). De pouco adianta desmascarar sítios e pessoas que mantêm cães acorrentados. A polícia não intervém. Ninguém intervém – a não ser que se invoque o nome de uma associação de defesa dos animais, que não hesita em passar à ação direta para extrair animais sujeitos a maus-tratos dessa condição medieval e inumana.
Não adianta esconder o diagnóstico: este é um caso em que só o pensamento (e a ação) radical quadra com uma solução. É preciso gente com coragem física para confrontar os inumanos que mantêm cães acorrentados em deploráveis condições. Pessoas que não se intimidem com a boçalidade e os modos destemperados, nem se acabrunhem com a ignorância de quem julga poder usar a razão da força em substituição da força da razão. Talvez falar na mesma linguagem, que é a única que gente deste jaez consegue entender.
Aplica-se aos cães acorrentados, como se aplica a quem quer acorrentar a opinião pública que se insurge contra despautérios da governação. O séquito do partido do regime alista as hostes para contra-atacar. Ou se trata de movimentos conspirativos da “oposição”, como se todos os que não subscrevem a bondade do partido do regime estivessem acantonados numa inorgânica oposição (num raciocínio binário que é revelador de estreiteza de pensamento). Ou se trata de dar um aval às decisões que são atacadas pelos críticos – “o que há de errado naquilo que é identificado pelos críticos? Nada” –, atirando aos críticos o opróbrio de terem criticado, como se fosse crime passível de pena maior.
O séquito do partido do regime, sentindo-se acossado e convivendo mal com quem dele discorda, gostaria de acorrentar os críticos e meter-lhes açaime. Seria o mundo perfeito: só concordância, só aplauso, só genuflexões, só decisões imunes à mácula, só um timoneiro predestinado com uma certa aura sebastiânica. E o resto, uma matilha de cães acorrentados e açaimados, a quem o partido do regime faria o favor de os deixar viver.
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