Radiohead, “Everything in Its Right Place”, in https://www.youtube.com/watch?v=GnfPaaMR6Qc
Desaprovava a gastronomia: considerava-a um capricho, dada a iníqua natureza de que a natureza humana era feita, e os alimentos antes vistos como mantimentos, uma exigência condizente com mínimos de sobrevivência. Esquecia-se de refeições. Não que não fosse assaltado pela fome, mas tinha outras distrações. Por cima de tudo, a posição filosófica contra a obrigação de comer. Não era estranha, a esta posição, a sensibilidade ambiental que prosperara. Não era de estranhar, a magreza impressionante. A pele macilenta, talvez sugerindo uma qualquer maleita induzida pelo défice de vitaminas e proteínas. A magreza não se justificava por imperativos estéticos, ou por estar na moda uma certa anorexia (pelo menos entre os manequins, o que também não jogava a favor da magreza, se este fosse o critério determinante). A dieta era espontânea. Não seguia um guião, nem fora prescrita por um perito da nutrição. Ocasionalmente, tinha de renovar o recheio do guarda-roupa. Se fosse de anotar estatísticas, talvez ficasse assustado com o gráfico do peso quando o gráfico lhe mostrasse como perdera peso. Não sendo o caso, usava o barómetro da roupa que, à passagem do tempo e com a persistente dieta infundida pela consciência, deixava de servir por ser excessiva. Um dia, o médico perguntou, com a habitual pose de paternalismo usada pelos médicos preocupados com os pacientes, se sentia algum mal-estar pela magreza. O médico notou a pele emaciada e torceu o nariz ao interpretar as análises sanguíneas. Ele ripostou, sem hesitar, que se sentia “fino como um alho”. O médico gostava de saber por que as pessoas usam estas expressões idiomáticas sem sentido, mas aquela não era a altura para indagar sobre a semântica. Prescreveu uma medicação (“por favor, não se esqueça de a tomar”) e aconselhou outra dieta (“ou, um dia destes, dá-lhe um ataque de fraqueza e vai ter de ser acamado”). Disse que sim, com a mesma convicção de um mentiroso relapso que não admite que a mentira que conta seja sequer mentira. A posição filosófica sobre a alimentação não se compadecia com as minudências da medicina. Sem dar conta, a vida ficava para segundo plano.
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