15.3.19

Contumácia


Mogwai, “Scrap”, in https://www.youtube.com/watch?v=zRRhmbrPMoY
No dorso de um livro de leis, uma anotação rebelde: “as leis, se existem, é porque são esquecidas.” 
O juiz discorda. Ufana-se de fazer aplicar as leis quando alguém as atropela. O réu, sentado no banco a preceito, discute a interpretação do crime de que vem acusado: ele não foi autor do que lhe imputam – e se por acaso for determinado que o foi (compensando um esquecimento inato), dirá que um punhado de atenuantes o favorecem na ilibação. A vítima está danada. Intui que tudo se encaminha para a expiação legal do réu. Acaba a concordar com a anotação à margem no livro de leis que ficou aparentemente perdido num banco do tribunal. 
As três pessoas vão para sítios diferentes, à saída do tribunal. Não adivinhavam que, nessa mesma noite, coincidiriam na amesendação no mesmo restaurante (em mesas diferentes). Não se falaram, apesar de se terem entreolhado. Cada um comentou, com as pessoas que os acompanhavam, a coincidente circunstância de horas antes estarem no mesmo lugar e em lugares diferentes.
Naquela noite, o juiz interiorizou a anotação que servia de rodapé ao livro de leis que alguém esquecera no tribunal. (Ele ficara zelador do livro, não fosse alguém reclamar a sua posse.) Sabia que há muita gente que assim pensa. Gente que vive à margem da lei e tira proveito, num risco constante que é o de ser apanhada em falso e cair nas malhas dos vigilantes da lei. Mas o juiz sabia que alguns figurões bem-postos, senhores de gordas fortunas, a condizer com a sua obesa estampa, senhores que circulam nos interstícios dos corredores do poder e o conseguem influenciar através de meios em débito dos mínimos de legalidade, tinham o condão de escapar às malhas da lei. (As histórias correm de boca em boca e, nos corredores onde fruem os rumores, era dado adquirido – por isso o juiz o sabia, como muita gente o sabia.) 
O juiz de igual modo sabia, como muitos o sabiam, que era infrutífero lançar o anzol a estes figurões, que, ato contínuo, vozes mais altas cuidavam de apagar os vestígios e de sacrificar a diligência dos ingénuos que acreditavam que podiam trazer os figurões perante a justiça. Este era o tempo e o lugar em que compensava (materialmente falando) ser contumaz profissional.

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