22.3.19

Os frutos só estão à vista depois de abertos (e outras aldrabices)


Ólafur Arnalds, “Ekki Ugsa” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=oSgaGlKr-pA
Das páginas abertas ao acaso, estando o livro sem paradeiro encostado na lombada de um sofá:
Que ninguém se iluda. Os fantasmas estão presentes em matéria corpórea. Veja-se o exemplo dos frutos. Encantamo-nos com as formas geométricas, as cores luzidias, o aroma que os frutos exaltam. Enamoramo-nos com a forma exterior dos frutos. Compramo-los. Chegamos a casa e começamos, com alguma avidez, a tirar a casca a um exemplar de cada fruto. São insípidos. É como se fossem o avesso do seu exterior (e são, qualquer um o pode confirmar); ou seja, é como se estivessem nos antípodas do rosto que oferecem, descarnados, exangues de sumo, sem ilustração de sabor. Que ninguém se iluda: os frutos só estão à vista depois de abertos.
Não apetecia ler mais do que este parágrafo. Adivinhou ao que vinha a parte sobrante do opúsculo. Uma lição de moralidade da primeira à última palavra, servida na bandeja enfática das metáforas, com requintes literários que mais não são do que artimanhas desprovidas de originalidade. Pergunta-se: mas quem se dá ao trabalho de pespegar lições nos outros (e mais, se as lições foram sobre moralidade)? Arrisca mais um naco de prosa. Avança umas páginas, ao acaso:
O homem não era extremoso marido, como lhe assentava na pública figura que construiu pacientemente. Talvez a imagem tenha sido fabricada pelos outros, por todos aqueles que, de uma ou de outra forma, o admiravam. O homem escudava-se nesse estatuto. Julgava ter um ancoradouro seguro no séquito, que não era de tamanho irrelevante. O estatuto compensaria os devaneios. Assim como assim – interiorizava, antes de caucionar o despreparo – alguém com estatuto superior devia ter privilégios. Devia-lhe ser dado fazer o que era vedado aos demais pela retórica dos costumes. Era só uma retórica e os costumes já não eram terreno fértil. Pelo que lhe era dado a saber, já ninguém respeitava os costumes. Já ninguém se ofendia com os desvios dos outros. O que faltava para dar o primeiro passo em falso? Dar o primeiro passo em falso. A certa altura, já tinha perdido a conta aos passos em falso. Foi descoberto. Num repente, o séquito desmobilizou. Já não sobrava ninguém. As pessoas evitavam-no, desviavam o olhar, sinalizando a vergonha que dele tinham. Proscrito, sobrava o arrependimento lógico. Já não vinha a tempo. Daí até ao final, foi uma decadência vertiginosa. Morreu sem que ninguém soubesse.
A segunda oportunidade não compensou. Aquela moralidade livresca era servil aos costumes. Interrogou-se: quem seria leitor de semelhante narrativa? Seria gente à procura das bissetrizes, carente de gurus para tudo-e-mais-alguma-coisa? Ou gente que, sabendo das bissetrizes, precisava de as reforçar, como quem firma os alicerces com medo de que a casa se estilhace ao primeiro vento tempestuoso? Não procurou a resposta. Não interessava.
Uns dias mais tarde, numa esplanada, viu como uma senhora da alta sociedade acenava com tom de reprovação, enquanto descaía numa carantonha de aflição, ao ler as páginas de uma revista que faz o apanhado das notícias da dita alta sociedade. Ao virar a página, conseguiu saber de que tratava a notícia:
Escritor famoso apanhado em adultério à luz do dia”, era o título – e era tudo o que conseguia ler, as letras gordas que se emprestavam ao título. O escritor era o autor do livro sem paradeiro encostado na lombada do sofá. 
Respirou fundo, encolheu-se no casaco (a brisa do entardecer tornara-se fria) e concluiu que o escritor, durante o processo da escrita daquele livro, andou a treinar para ser o que ele ensinara que não se podia ser. Pagou e encaminhou-se para casa. Sem saber a diferença entre o “pode ser” e o “deve ser”, tão do agrado dos catedráticos da moralidade. 

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