11.3.19

O cálice mais alto


Richard Hawley, “The Ocean”, in https://www.youtube.com/watch?v=wYoNrmJe9LA
Dizia-se: corremos para além da loucura, nos escaninhos embalsamados na memória, contra a tirania da sanidade, contra o pulcro avizinhar do ontem deslimitado. Não se dizia que éramos penhores dos hábitos amaciados no formol da má formosura. Mas não importavam os dizeres alheios. Se queríamos um bodo às artes, tínhamos o bodo às artes. Se queríamos uma peregrinação ao ancestral viver perdido algures entre montanhas, tínhamos a peregrinação ao ancestral viver perdido algures entre montanhas. Se queríamos perder a cabeça por uma excentricidade qualquer, perdíamos a cabeça por uma excentricidade qualquer (desde que tirada da imersão, sem qualquer probabilidade antes de ser dela remida). 
Eram nossos os cálices que empunhávamos a cada sagração que calhasse no sortilégio do desejo. Podíamos correr contra a maresia que se insinuava entre os poros da janela. Podíamos dizer que a lua era diurna e a lua transfigurava-se num ser celeste com vida diurna. Podíamos ensaiar um poema a duas mãos e o poema entretecia-se no vagar do tempo só nosso. Entre duas funções, erguíamos o cálice. Era sempre o cálice mais alto. Nele, o néctar que entronizava a nossa distinta maneira de ser. 
Eramos, talvez, ufanos na proclamação: um módico de vaidade não vinha a destempo, pois estávamos convencidos da nossa singularidade. Assim como assim, não havia mais ninguém como nós (por mero desconhecimento dos outros, que manifestamente não importavam). Não havia outro lugar como o nosso, transferido para a semântica do éden. O olhar arrebatado tecia-se na vulgata do tempo amarelecido pela usura. Era quando atiçávamos o cálice ao mais alto que os braços podiam subir – e, garantimos, era alto, tão alto que víamos o Evereste como se estivéssemos debruçados sobre um miradouro. 
Nunca tínhamos as coisas como derradeiras. A matéria fluída dava sentido ao sentido da vida. A vontade extasiante conseguia aquilo que o lugar-comum, e as pessoas mais modestas, chamam milagre. Deixávamos um perfume ímpar nos lugares a que íamos. Sabendo da impossibilidade dos pressentimentos, atirávamo-nos com a coragem de um estouvado ao caudal onde se congeminavam as possibilidades. Acreditávamos em nós. Nos lugares onde fôramos. Nos lugares que sabíamos serem promissória a resgatar quando nos aprouvesse. Os palcos sem gente eram multidão com a nossa presença. Pois era dessa presença que estávamos carecidos, como droga boa que não cessa de alimentar o vício de nós.
Como podíamos recusar os sucessivos cálices?  

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