21.3.19

Poesia antes das refeições (outra liturgia)


Wordsong, “(Brave) Save My Soul”, in https://www.youtube.com/watch?v=z1lunZZrNwo
(Mote: o dia mundial da poesia)
Não eram preces, as lidas antes da refeição. O ritual diferia, contudo. Os comensais muniam-se de um poema, ou de umas estrofes, apenas, lidos antes de se deitarem à refeição. Não havia superstição, ou simbologia apelando ao misticismo; cuidavam assim da poesia pelo prazer que dela retiravam, pela fusão de palavras improváveis, porque – diziam – os poetas sabem fazer desenhos com as palavras, são autênticos prestidigitadores. Sabiam, por experiência própria, que uma refeição não precedida da leitura de um poema, ou apenas de um punhado de estrofes, não oferecia boa digestão. A poesia lida era o aperitivo que preparava os comensais para prolongarem os prazeres pela refeição dentro. 
O critério da escolha não tinha critério. Ou, por assim dizer, às vezes tinha. Havia dias com um significado próprio que exigia um poema a preceito. Um dia, o da apologia da vida, chamando à colação:
“As mãos amadurecem, sorvem todo o sol
a que cada corpo tem direito
apenas porque nasce.” (Armando Silva Carvalho) 
Ou, noutro dia em que a jugular do tempo sobressaltava os espíritos, 
“porém não há passado:
fora do tempo só existe a vida
uma luz imortal que o tempo mata.” (Gastão Cruz) 
Discutindo o sortilégio da cidade, um deles convocou o “Nevoeiro” de Eugénio de Andrade:
“Viera do rio pela mão duma criança.
A cidade é agora de porcelana branca.” 
Se sobra um tempo em que uma desilusão apetece arregimentar o pessimismo antropológico, sem anular o cinismo como compensação, dir-se-á: 
“Gosto das cebolas
e das pessoas.
Mas as pessoas
são como as cebolas
fazem chorar.” (Adília Lopes) 
De almas tão sensíveis não estranha serem agredidas pelo mundano da política e da religião, pelo que faz sentido delas escarnecer (sem ofensa a muitos vultos da cultura, por causa de seus vieses), afirmando, com Herberto Helder, 
“Cristo foi uma espécie de marxista-leninista mas com alguns escrúpulos extra-partidários.” 
Ou, no fio delgado, e paradoxal, entre atualidade e poesia, comungar da perplexidade de Luís Quintais:
“Está de joelhos, a Europa, e alguém
acaba de a degolar, alguém a está
degolando, e o inferno
é o fotograma voltando, voltando.” 
Sem esquecer o amor, o amor de que não se pode abdicar, acompanhando Rilke:
“Pois o que nos toca, a ti e a mim,
isso nos une, como um arco de violino
que de duas cordas solta uma nota só.”
Outros dias eram anónimos na representação de signos, deixando a escolha do poema ao acaso. O não critério não era o critério mais fácil, todavia. Os comensais eram exigentes consigo mesmos. E porque se sabiam reciprocamente exigentes, não se descuidavam na escolha do poema, ou das simples estrofes que antecediam a refeição. Em véspera de uma refeição diurna num fim de semana, um dos comensais invocou um pesadelo absurdo para proclamar: 
“Voltar ao fim
pintar três vezes o sete:
ficar doido.” (Mário de Cesariny)
E não se perca a humildade de quem se reconhece imensamente imperfeito, metendo o espelho à frente dos olhos:
“Gosto dos outros
que têm defeitos
gosto dos outros
que não são perfeitos.” (Adília Lopes). 
E porque a poesia é também musicalidade, exaltar estes versos é exigência indeclinável: 
“pernoito no interior do corpo desarrumado
o medo invade o penumbroso corredor
descubro uma cintilação de água no estuque
uma cicatriz de cristais e de bolor abre-se
porosa ao contacto dos dedos indica
que não haverá esquecimento ou brisa
para limpar o tempo imemorial da casa.” (Al Berto)
A poesia é a refeição maior que se serve à alma e dela faz um extenso mar onde apetece navegar. Pois 
“nada pode ser mais complexo que um poema,
organismo superlativo absoluto vivo,
apenas com palavras,
apenas com palavras despropositadas,
movimentos milagrosos de míseras vogais e consoantes,
nada mais que isso,
música, 
e o silêncio por fora.” (Herberto Helder)

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