16.9.19

Bolsa de valores


Killing Joke, “Eighties”, in https://www.youtube.com/watch?v=x1U1Ue_5kq8
“Bondade, humildade, mansidão e paciência.” 
Apanhado em falso (assim acontece com a única missa a que não posso faltar), as palavras do sacerdote ecoavam em repetição. Dizia o preclaro cura, “estas são as virtudes em recessão, as virtudes que estão caras”. Já tenho idade para não atribuir importância às palavras dos pregadores de templos religiosos, pois o agnosticismo é o magma da identidade. Não consigo. Na missa a que não posso faltar, devo ser a pessoa mais atenta ao discurso do sacerdote (que os restantes assistentes da eucaristia perdoem o atrevimento). O padre insiste que só chegamos a deus se formos intérpretes daquelas virtudes. Caso contrário (não o disse, mas pressentiu-se), seremos almas sob zelosa inspeção divina, e não é de crer que a incomensurável bondade de deus chegue para a redenção de todas as almas tresmalhadas.
(Por esta altura, senti comiseração dos crentes. Como são humanos e têm um impecável cadastro de imperfeições, suponho-os sobressaltados pela elevada probabilidade de não conseguirem chegar a deus. Esta é uma vantagem comparativa dos agnósticos: não querem chegar a quem não admitem existência. Podem ser sossegadamente imperfeitos.) 
O discurso dos valores é uma moda protagonizada por alguns tutores da moralidade: os valores, os bons valores que cimentam uma boa sociedade, estão em crise. Sobretudo entre os mais novos. Não concordo que as gerações mais novas estejam em falta com os bons valores. Se o problema existe (o que, insisto, é suscetível de contestação), ele vem do passado. É legado das gerações mais velhas. Quando alguém pede aos mais velhos para ensinarem valores aos mais novos, mais parece uma pulsão redentora dos ensinadores (ou de quem lhes encomenda a empreitada). 
Por hipótese, considere-se a validade do levantamento que convoca o ensinamento dos valores aos mais novos. Somos nós, os mais velhos, a arcar com a tremenda responsabilidade de os subtrair à orfandade de valores. Caso contrário – e sigo o que julgo ser o raciocínio tácito –, os jovens vão crescer sem valores, construindo um futuro que tende a desconstruir-se na anomia interna em que, já não jovens, vão enformar as suas existências. 
Para ser um ensinador de valores, teria de perfilhar o diagnóstico anterior. Não é o caso. Admitir que os jovens precisam de um banho de valores é pressupor que a educação na escola foi superficial, banal, um desperdício. Mesmo que partilhasse este diagnóstico pré-apocalítico, não faria de corretor desta bolsa de valores. A função pertence ao meio familiar e depois aos próprios que procuram (ou não) valores que os conduzam. Por outro lado, os valores não são objetiváveis. Não posso ter a pretensão de ensinar o que considero serem os meus valores aos outros (se existirem, os valores). É uma intromissão na esfera individual alheia. Não gostaria que, enquanto jovem, fosse sujeito passivo de uma formatação de valores. Se não aceitaria estar no lado passivo desta relação, não concebo a hipótese de me colocar no lado ativo. 
A bolsa de valores é uma teia complexa onde se sopesam muitos elementos: o substrato familiar, o ambiente em que crescem as crianças (também expostas ao meio escolar, umas às outras), a envolvente cultural, o desenvolvimento das suas personalidades, as circunstâncias, os acasos, as contingências. Ensinar valores é dar por adquirido que os (vou chamar-lhes assim) valores adquiridos, um certo cimento do coabitar social, são os valores certos. O que pode não ser o caso, através da lente de quem os observa. 
A bolsa de valores convoca à autoaprendizagem. Um processo que dispensa uma intervenção exterior carregada de paternalismo e de uma formatação dispensáveis.  

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