10.9.19

Discos perdidos


dEUS, “Slow”, in https://www.youtube.com/watch?v=h9OILKwaFNA
- A memória é uma representação.
Consideravas um desprestígio, a caução ilícita do tempo que davas por perdido. Falavas do passado. Mas falavas dele como se o abjurasses, não por dele teres vergonha, mas porque mergulhar nas memórias era equivalente ao ultraje do tempo animado. 
- E mais digo: aqueles que não se desligam das memórias deviam ser condenados ao seu próprio cárcere. Quero dizer: deviam ser condenados à privação do tempo presente. E tal devia ser visto como uma pena severa, por mais que estipulassem o seu contrário. 
Intuías absurdas, as memórias. Era das poucas coisas em que não admitias tolerância. Ele há tanta gente credora de tempo – as pessoas que morrem antes do tempo; as pessoas que se angustiam por terem a noção de que o tempo à sua mercê é uma medida por defeito; as pessoas que acabam por ser maiores do que o tempo que lhes é outorgado – que não se podem legitimar as lágrimas vetustas de quem regressa constantemente ao tempo pretérito. Se são reféns das memórias, que se limitem a vivê-las em privado. Não querias arrastar considerações sobre a iniquidade, porque percebias que as medidas do tempo não são lineares para duas pessoas e para as suas diferenças. 
- Por isso insisto que a memória é uma representação. Quero dizer: a contrafação do único tempo que não se desgasta na poeira ancestral, e que se perde em cada instante em que a memória responde uma convocatória e ultrapassa a respiração dos poros. É uma representação, a memória. O esbulho da transcendência do presente, que sucumbe perante o apelo do tempo puído. Uma autofagia. Os projetos que se devolvem ao tempo já gasto são o suicídio do presente. Uma indigna representação dos seus autores, fulgurados pela falácia do tempo irremediável.
Ficavas incomodado com a mnemónica do passado que se repercutia no tempo usurpado das mãos dos reféns da memória. Era como se projetassem no presente uma constelação de imagens retidas nos arquivos e pudessem pôr as mãos nessas imagens; era como se o tempo fosse repetível, com a conjugação de todas as suas incontáveis circunstâncias. O que sobrava era um imenso vazio: as memórias são exauríveis. Não conseguias discernir o apelo dos reféns da memória, se o tempo assim resgatado tende a esgotar-se à medida que eram repetidas as memórias. E perguntaram-te:
- Não guardas memórias? Não voltas a elas, nem quando te distrais nessa militância metódica do tempo presente?
Não demoraste a preparar a resposta:
- Eu sou a minha própria circunstância. O amplexo de que me dou conta no atapetado lugar de onde me construo, a cada estrofe do tempo. Não recuso o tempo que ficou para trás e tenho uma memória que não indefiro. Mas não lhe concedo a liberdade excessiva que tem noutras pessoas, pois temo que a memória como representação hipoteque o tempo que tenho entre mãos. Que é o tempo que elas podem tocar.

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