25.9.19

Filiação


Mão Morta, “É um jogo”, in https://www.youtube.com/watch?v=CJ-TAt2bEJ4
Guardo no peito o sismo em que me fiz gente. Discordo do que tenho de discordar, imperturbável na idiossincrasia singular. À noite, não me avassalo na transfiguração dos ascetas; prefiro deitar o olhar nas sombras que invadem o quarto desde a janela, desenhar-lhes os contornos que julgo apresentáveis e nas entrelinhas congeminar as estrofes inauditas. 
Não tenho por tença os bolores, nem os que são ramificações que exortam o reavivar de outras vidas. A química linear não me deixa transbordar do leito em que me refaço, e não o vejo como torção conservadora. Contam mais os olhos, o que conseguem ver entre a miríade de imagens que se despejam sobre eles. A decifração das almas não corre por minha conta. Se me exigem palavras, devolvo o silêncio. Se me pedem o silêncio, guardo para mim a prosa heurística. 
Dizem que procuramos a árvore matricial. Procuramos a filiação, qualquer género de filiação, porque somos humanos e os humanos desaprovam a orfandade. Dizem: a vida com os semelhantes é imperativa e que somos obrigados a subscrever os códigos de conduta, assimilá-los como fazem os bons estudantes, sob pena de arrostarmos o peso de um cadáver antes do tempo. Não me configuro pelas coisas que se abatem contra a vontade. Tenho-as por extemporâneas, um punhal que se aviva na carne que não o pediu. Uma ingerência, escusada como acontece com as ingerências. Dantes, pensava que errava pelas ruas nómadas da cidade: não conseguia descobrir uma árvore sequer entre a floresta de cimento, quanto mais uma a que fosse atribuído o papel de árvore centrípeta. Desmentindo os preceitos, não sabia o verbo da orfandade.
A filiação medra dentro de cada um. À vontade de cada um, sem regras – ou com as regras afiveladas sob a batuta da vontade individual. Com as representações, necessárias ou oportunistas (não interessa), que se configuram nos figurinos desenhados pelo pensamento. Desconheço filiações forçadas, seduzidas de fora para dentro, ancoragens que não terminem numa qualquer modalidade de dependência. A dependência que encerra um viés, adulterando a pureza do ser quando se expõe aos outros, contaminado. 
Insisto: a filiação medra dentro de cada um. E cada um escolhe a filiação onde coabita um suporte de vida. De pessoas e de ideias. E de sentimentos. A filiação assim orquestrada só tem sentido se for exacerbada. Com as regras sem espartilhos exteriores, apenas ditadas pelo consenso dos atores que intervêm na peça que se amotina, incapaz de pactuar com anestesias.

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