12.9.19

Outubro não pode esperar (short stories #159)


Nils Frahm, “Human Range”, in https://www.youtube.com/watch?v=akYE_PAZ5Bg
          Alvorada. Assim como assim, o sono já fora banido há algum tempo. Preciso de um soro que avive o sangue. Preciso de precisar de alguma coisa. O calendário em cima da mesinha-da-cabeceira funciona como uma guilhotina. Lembro-me de coisas várias, avulsas na sua ordenação, sem ligação entre elas. Abro a janela. Já sinto um aroma a outubro. Não sei descrever o aroma a outubro; sei apenas que este é o aroma a outubro. Falta muito para outubro? Olho para o calendário, que me dá a resposta. Ainda falta. Determino que outubro não pode esperar. Não podem esperar as árvores que esperam as folhas caducas. Não podem esperar os rostos melancólicos dos que entram em outubro como a antecâmara da tortura que pressagia o inverno. Não sou como eles. Recebo outubro preparado para o abraçar demoradamente. Agradeço. Outubro consagra o fim do tempo quente. Decreta o fim do suor ansiolítico. Talvez migrem os pássaros que, como as pessoas (calculadas em sua maioria), desprezam o outono sombrio, as primeiras chuvas que se instalam, o ázimo da luz baça, o mar tempestuoso que anuncia intempéries sem amparo. É alvorada e eu ainda aqui, como se estivesse despojado na cama a pensar no que devo pensar, sem saber que o pensamento pode transfigurar a indolência. Não deve ser preguiça (sussurro, em autocondescendência). Não tarda a tarde e não me parece que tenha feito do dia uma utilidade. Sinto-me cercado por um insólito pesar: tenho a impressão que alguém conspirou contra o calendário e as suas folhas diárias ficaram imóveis. E outubro nunca mais chega. Diria que as folhas do calendário andaram para trás e fez-se agosto, outra vez. Pode ser o sono a entaramelar-se na lucidez e já não sei da linha exígua entre lucidez e sonho. Pode ser que haja uma data inscrita numa pedra, a data centrípeta de onde tudo desabrocha. E a data se agigante ao ouvir dizer que outubro não se demora. Contra as profecias dos almirantes do desassossego, os galanteadores doestio, que vociferam contra outubro, acusando-o de ser extemporâneo. Estão errados. Outubro não pode esperar. Faça-se outubro em setembro.

Sem comentários: