18.9.19

Petição de princípio (short stories #160)


New Order, “Ecstasy”, in https://www.youtube.com/watch?v=2jLVV-eOiAw
          Pertenço a uma casta sem paradeiro. Não deixo que as páginas amareleçam nem que sejam assaltadas pelo tempo estrénuo. Se duvido, persisto na consagração da pergunta, como se fosse um banquete para alma. Leio. Observo. Pergunto outra vez. Sem o sono ausente, que é embaraço. Dizem que ao avançar na idade precisamos de menos sono. Sobra o tempo; mas todos protestamos, em coro com a moda dos assoberbados, que faz falta ter mais tempo para o que se não tem tempo. Aproveito o mar para tirar notas. O luar para decifrar músicas. Dou às mãos a maresia que se insinua desde um lugar distante e se faz cais na minha morada. Da noite não espero nada, se não sonhos. Um património imaterial. Os sonhos que vêm de uma fábrica de prodigalidades. Às vezes, não sei que palavras encontrar. Não sei que palavras escolher, depois de satisfeito o dilema precedente. Revolvo o processo desde as fundações: pode ter acontecido que as palavras encontradas sejam órfãs, o que contamina o processo de sua escolha. Não importa. É sempre preferível ao silêncio, menos quando o silêncio é a poesia que se contempla na embocadura da janela. O vento frio tutela o corpo. Não tenho frio, apesar de atestar tratar-se de vento frio. No meio de um nada, um vestígio é uma fortuna. Esse é o sortilégio: demandam-se os pequenos nadas que se transfiguram em fortunas desmedidas. No palácio da escassez, um pequeno rudimento aromatiza a literatura de que somos intérpretes. Os pequenos nadas não se compadecem com as empreitadas soberbas. Amo o amor como o amor me traz por amo. Sou estuário largo, com uma distância de perder de vista. E, todavia, só albergo quem tomo por amor. Ocupa todo o estuário que sou. Com a noite a meio, repousando no ombro lateral, só para sentir a pele macia que me devolve o sono pouco. E desses poros extrair, como ouro maior, a impressão digital que faz de mim bússola.

Sem comentários: