16.6.20

O bolbo da festa

P. J. Harvey, “You Said Something” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=-zB0UzHGo4s

O bolbo infante não sabia ao que vinha. Medrava, ainda. O processo de fotossíntese fazendo o seu caminho. Já emergira do húmus e começava a aprendizagem do mundo. As pessoas eram sempre as mesmas, cumprindo uma rotina matemática. Envergavam luvas e traziam o mesmo rosto impassível. Não falavam. Limitavam-se aos procedimentos estabelecidos num manual. Um estranho aparelho que traziam a tiracolo servia para avivarem a sequência dos procedimentos. O bolbo sentia-se cortesão no horto. Eram de polé os tratos que eram seu merecimento. Devia ser de linhagem sublime – chegou à conclusão, ainda durante o amadurecimento.

Um dia, ouviu um dos tratadores. Afinal estes humanos também falavam. E ele, o bolbo de casta, entendia a linguagem dos humanos. O tratador disse para si mesmo: “estás a ficar um belo bolbo. És um bolbo premium. Terás destacamento. Pelas minhas contas, daqui a duas semanas estás a florir. Partirás para engalanar uma cerimónia importante. É a minha aposta.”

O bolbo não cabia em si de contentamento. E não contia tanto orgulho. Era um exemplar garboso, um exemplo para os da sua espécie. A crer no diagnóstico do tratador, o bolbo seria um espécime raro. As portas do reino que se abrissem que o bolbo seria seu enfeite resplandecente. Os altos dignitários ficariam extasiados com a sua pose fidalgal. Comentariam sobre a pujança do bolbo, a perfeição das folhas que se destacavam da raiz, a cor garrida, depurada. Seria o bolbo do reino.

No dia solene em que o bolbo foi cuidadosamente encaixotado, o dia do adeus ao horto que o cultivou, o bolbo ainda não sabia do seu destino. Umas vozes murmuravam ao longe. Ele não conseguia distinguir as palavras ditas pelos homens e mulheres que trabalhavam no carregamento do camião. O bolbo tinha planos ousados. Mostraria a sua beleza singular nos salões onde a nata do reino e os embaixadores de outros países desfilariam em distintas celebrações. Seria o bolbo da corte. 

O pressentimento não quadrou com a imensa consideração que o bolbo tinha de si mesmo. Foi parar a um salão sem o quilate da dinastia dos escolhidos. Era um salão de festa. A azáfama dos circunstantes não deixava dúvidas. Punham as mesas, ornamentadas com enfeites exuberantes e policromáticos. Cuidavam de todos os detalhes para que nada fosse fracasso. Um indivíduo altivo não parava de emitir ordens em voz audível. Repetia à exaustão: “não pode falhar nada. Não pode falhar nada”. 

O bolbo foi parar às mãos da personagem. Apreciou-o, demoradamente (a personagem ao bolbo). “Este serve”, ainda ouviu, antes de passar de mão em mão até a uma mulher que fazia o arranjo das flores. Umas horas mais tarde soube do seu destino. Era ornato na festa de casamento da filha de um messias da finança que primava pelo kitsch. O bolbo não conseguiu reprimir uma lágrima de melancolia. Ele, que tão ambiciosos planos fizera, acabara como bolbo da festa – e de uma festa carregada de kitsch. 

O bolbo aprendeu que não é bom conselheiro terçar planos tão metodicamente congeminados na epígrafe de uma elevada autoconsideração. Se houver lugar à frustração de tais planos, só fica a angústia como mercê da autocomiseração. 

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