10.6.20

Quando fazemos de conta que fazemos de conta, estamos a ser sinceros ou a mentir a dobrar?


Teho Teardo & Blixa Bargeld, “The Empty Boat” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=rkPie59J2GM
Ninguém é conhecedor. Uma sucessão de diferentes véus abate-se sobre a armadura que esconde o paradeiro das pessoas. Podemos andar num logro contínuo. A pressentir movimentos que não quadram com as intenções, porque os outros antecipam as nossas antecipações e tudo fica mais complexo do que um jogo de xadrez.
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Alguém fixa esta fórmula numa mensagem, em jeito de diplomático adeus: “com elevada estima e consideração”. Como o poderá saber o destinatário? Se o sarcasmo atravessar discretamente a mensagem que precede o adeus, o destinatário pode desconfiar que a fórmula com que o adeus é desenhado é a pedra de toque do sarcasmo. A “elevada estima e consideração” é a fingir. Se o destinatário não intuir o sarcasmo e fixar a literalidade daquela fórmula, reterá com um erróneo sentido de superioridade (“tratei-o mal e ele despede-se em resposta confessando a sua elevada estima e consideração”). Nunca se saberá, a menos que este consiga entrar na cabeça do remetente – ou que lhe pergunte sem pejo.
Alguém se oferece para uma empreitada. Contrariado. Disfarça a contrariedade que o percorre quando se oferece como diligente operário da empreitada. Finge que está a fingir. Não queria ser o operador da empreitada, mas finge que desempenha o papel com um intenso convolar de prazer. Se a arte do fingimento for apurada, os outros não chegam a saber que o fingimento subiu a palco. Pouco lhes importará, se tirarem partido da empreitada.
Alguém esboça um sorriso de simpatia quando recebe em audiência outrem que reputa como maçador. Diz-lhe que é um prazer recebê-lo e que nem dormiu de véspera na ânsia de saber o que motivou a audiência. A outra personagem sente-se lisonjeada. Não chega a dar conta do duplo ato de fingimento: o sorriso desembaraçado que esconde a profunda antipatia por ele e as palavras elogiosas que são o elevador para o colocar no púlpito do reconhecimento. Não chegar a saber que os dois momentos são atos diferentes de um logro bem reproduzido. É um ato de generosidade que tem âncora na ilusão fermentada num duplo fingimento. 
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Um fingimento em cima de um fingimento não anula o primeiro fingimento. Não devolve a veracidade. Os fingimentos que se sucedem numa espiral interminável são como um mergulho num poço sem fundo onde o fingimento tem a sua ascese. Uma mentira sobre uma mentira não é um desagravamento da mentira, nem a recuperação da verdade.

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