26.6.20

O sem emenda (short stories #228)


          Tinha um fado escrito com a poeira das estrelas. Era um fado baço, as sílabas estilhaçadas pelas vírgulas do tempo. Uma espécie de roteiro para o infortúnio. Um roteiro ditado por uma singularidade: ele era o fautor dos próprios desares, e estava consciente das ações e das consequências. Podia um observador erguer a perplexidade pelo desprendimento, ou como não era possível incarnar um mínimo de aprendizagem que evitasse as recaídas. Até ele percebia essa lógica. Na hora H, falhava sempre uma peça – e das importantes. Tantas vezes os preparativos foram exaustivos (assim o considerava) e depois fracassava; a última decisão, aquela que contava, viria a ser o espelho vindouro de um equívoco. Tantas vezes jurou que não haveria mais vezes assim. Mas reincidia. Reincidia sem ser por acaso. Parecia que era de propósito. Como se pelas veias corresse um sangue em ebulição com a marca registada do masoquismo. Em seu socorro sobrava a virtude para derrotar as mal-andanças. O levantar-se e saber que a manhã era o fermento para se levantar do chão que tocara. E prometer que a manhã seguinte seria menos difícil. Até que resgatasse a bonança, só à espera de outro passo em falso, só à espera de experimentar o precipício outra vez. Era o sem emenda. Ninguém o conhecia por esta alcunha. Tinha sido cunhada por ele, em segredo. E nem com a madurez entretanto preenchida circundou a doce apoplexia do medo de não ter medo. O frémito de intuir o fino fio do arame sobre o precipício era o que o movia. Não lhe ensinassem a palavra “normalidade”. Já eram tantos anos e sempre a errar (no sentido de ser propositadamente errante) que não haveria modo de corrigir o defeito. Talvez nem fosse defeito. Só o é para os que repetem o erro e se mortificam sem remédio. Ele era o sem emenda. Mas não queria deixar de o ser. 


Idles, “1049 Gotho” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=WmfIheTjtjw

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