1.6.20

Caligrafia


Electronic, “Get the Message”, in https://www.youtube.com/watch?v=_7sVSSb2mU4
Um código de conduta: as letras e os números repousavam no papel, obedeciam a um desenho codificado. A linhagem de quem os escrevia. Perguntavas: 
Porque desenhas o oito dessa forma? 
(Duas circunferências, a de cima mais pequena assentando nos ombros da outra, maior.) 
Não sabia dar resposta. Mas levou-me a pensar. Não seria o caso do oito (assim julgava), mas havia letras que foram reconfiguradas com a passagem do tempo. Os erres que desenho agora são diferentes dos erres da adolescência. O mesmo com os esses. Um perito das profundezas da alma daria resposta à altura. Diria que a caligrafia é permeável às mutações por que passamos. O perito estará até qualificado para fornecer explicações com elevada densidade sobre o porquê de a caligrafia sofrer metamorfoses. Talvez porque ninguém é à prova de metamorfoses durante o tempo que leva de vida. O assunto não é da lavra da complexidade.
Voltei atrás, depois de algum silêncio e de nula reposta à demanda: 
Não sei existir uma razão para desenhar os oitos desta forma, ou os erres, ou os esses. É um movimento espontâneo. Talvez me recorde que foi por estéticas considerações que deixei de fazer um oito que era o sinal do infinito na vertical, ou um erre com um desenho diferente dos erres atuais, ou um esse em letra de reprografia em vez de um esse correspondente à caligrafia da escola primária. Deixei de prestar atenção à cartografia da caligrafia. Ainda que haja peritos que consideram a codificação da caligrafia e atribuem sinais correspondentes ao desenho das letras e dos números, não quero considerar a hipótese. A caligrafia é um movimento aleatório.
Aleatório e – intuí logo a seguir, já na companhia do silêncio – não ordenado. A certa altura, pode apetecer reconfigurar certas letras do alfabeto, redesenhando a caligrafia. Apenas porque apetece, a estética como única medida. Sem relação causal com possíveis modificações do comportamento, ou maneiras diferentes de nos posicionarmos como entes ativos do mundo de que somos atores. Se aceitasse o desafio da epistemologia da caligrafia, podia acrescentar mais dúvidas que serviriam para negar a discussão: a caligrafia da mesma pessoa não é influenciada por estados de alma? Um erre sob influência do sarcasmo não é diferente de um erre de quem o escreve irritado? Um esse num texto apaixonado não tem um desenho diferente de um esse num requerimento à administração pública? Disseste, em fim de conversa: 
Nada disso interessa. Hoje já pouco manuscrevemos.

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