Dizias: a lua tem espinhos e não sabemos se eles estalam na boca.
E eu dizia: não queremos ter o sabor de arbustos na boca. Ficamo-nos pelo luar que se desembaraça das finas nuvens. Um portento de um escultor anónimo. As uvas que adoçam o sangue.
As mãos atadas cuidavam do resto. No emaranhado da escuridão, os olhos benziam o culto pesar da honestidade, uma mnemónica pagã. Essa era a nossa religião. Dizíamos, em uníssono: nesta demanda, somos à prova de corrupção. Não deixamos que os braços se amordacem no agravo que liquefaz a honestidade. No acerto de contas, não queremos ficar devedores. A adstringência da alma joga-se contra os pesadelos de que não somos sombras.
Dizias: confere o manual de instruções. Segue essas linhas baças. Procura uma lupa, se preciso for. Para intuirmos as regras a que não devemos obediência. Se for preciso, tracemos as bissetrizes da loucura. Da nossa loucura.
E eu dizia: são estrofes de um poema arrebatador, as tuas palavras.
No fausto onde amesendávamos, éramos ao mesmo tempo lídimos gastrónomos, os arquitetos das iguarias que desfilavam em interminável banquete. Não era a chuva que nos intimidava. Não eram as reprovações hirsutas dos guardiães das morais que conseguiam ganhar lugar nos murais que se congraçavam no olhar. O imperativo do sonho que vivíamos de viva voz era mais convincente: que não nos falassem de fronteiras, que seríamos os primeiros contrabandistas. Sem disfarce. Dizíamos que as nossas almas se reproduziam em incontáveis arremedos, mas que só podíamos contar com as originais. Tutelávamos com rigor o perfunctório desviver com a convocatória do seu oposto. Sabíamos como fazer triunfar o lado sublime que tinha paradeiro na poesia.
Dizias: eu sei que posso contar contigo. Armadura pétrea, fortaleza escondida dos mapas, cartografia que eu sei dedilhar de cor. Eis-me aqui, teu livro aberto. Folheia-me.
E eu dizia: nada me apraz mais. Sei-te meu periscópio, a caução do que se observa através da janela que se abre ao mundo. És essa janela, a prova dos nove, matéria singular que em meu sangue se torna recordação do porvir. A calmaria feita ebulição. Não preciso de mais nada.
Imaginávamos paisagens. Lugares que prometemos arregimentar no nosso atlas privativo. Descobríamos os passos ímpares enquanto as mãos permaneciam atadas. Em sua liberdade. Éramos corpos siameses. No sonho que se mantinha de viva voz.
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