O olhar decanta-se das impurezas que o agridem. Pedaços de vidro esmagados que podem ferir o olhar. Há memórias que podem ter esta serventia. Mas a memória serve-se das pestanas que decantam as memórias, uma seletividade exigida pela temperança da alma. Há, todavia, um sentimento de frivolidade no exercício que separa o que da memória tem o condão de agredir a alma. O notório fingimento não aplaca as apoquentações que se sedimentam no alfobre do tempo. É como se a memória fosse o primeiro agente agressor de si mesmo e dela viesse uma lava colossal que contamina o sossego. Que préstimo têm essas memórias azedas? São tutela nefasta, uma cortina espessa, encardida, que se deita sobre a fazenda que acolhe o dia presente. As pestanas purificam o olhar. São à prova de memórias contrafeitas – contrafeitas porque não resolvem o dia presente e são imagens reavivadas sem propósito reconhecido. Deixam o olhar livre dos embaraços que se remoem no tempo pretérito e embaciam o olhar que se perde no labirinto que censura o diletantismo. E o olhar abre-se total, como escotilhas que deitam os fragmentos do mundo para dentro da alma. Amanhece na protuberância da claridade singular que determina o dia. Nas pestanas se contêm os embaraços que ficam à porta do olhar. Não é fingimento: um mau olhar – aquele que se enreda numa teia que não aproveita à serenidade – não se desconta ao património do acontecido; mas as pestanas agem como um bondoso censor interno que aparta do palco as memórias que intuem um contrabando da alma. Não deixam à mostra a conspiração dos acontecimentos idos contra a fragilidade do hoje. Não há quem lhes confira o reconhecimento que merecem, na sua discreta diurese. Às vezes, é um ator de terceira linhagem que contém a madurez dos princípios.
30.6.20
Pestanas sem embaraço (short stories #229)
Sleaford Mods, “Second”, in https://www.youtube.com/watch?v=IT09DGuXwYQ
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